Breve Análise sobre a Natureza Jurídica dos Serviços Realizados por Transportes de Aplicativos à Luz dos Posicionamentos Jurisprudenciais e Legislativos Brasileiros

A empresa Uber, fundada em 2010 na cidade de São Francisco, nos Estados Unidos, chegou ao Brasil em 2014, no Rio de Janeiro e, em seguida, em São Paulo, Belo Horizonte e Brasília e, desde então, se expandiu significativamente pelo território brasileiro ao longo dos últimos anos, possuindo motoristas em atuação em mais de quinhentas cidades atualmente . Além disso, em razão de ser uma opção prática de transporte – inclusive de objetos –, em que basta a inserção de um local de origem e outro de destino para solicitar uma viagem, com pagamento dentro do próprio aplicativo, surgiram diversas empresas com modus operandi similar, como a 99, Cabify, inDrive, entre outras.
A popularidade do transporte via aplicativos não apenas está atrelada à praticidade dos serviços, mas também em razão da ausência de regulamentação que os norteiam, inexistindo inclusive, até o presente momento, obrigatoriedade de recolhimento de quaisquer tributos sobre a atividade. Exatamente por esse motivo passaram a existir diversas discussões acerca do tema, principalmente no que tange à natureza jurídica da relação entre as empresas de transporte por aplicativos e seus motoristas, o que se deu primordialmente a partir de pedidos de reconhecimento de vínculo empregatício via ajuizamento de reclamações trabalhistas individuais e ações coletivas pelo Ministério Público do Trabalho.
Nas decisões proferidas, a maioria dos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) e o Tribunal Superior do Trabalho (TST) vêm entendendo pela inexistência de vínculo empregatício, sobretudo em face da não caracterização de subordinação nas relações. No entanto, a questão ainda passa por uma enorme insegurança jurídica, visto que o tema não se encontra pacificado ou possui regulamentação legal em vigência.
Um exemplo recente disso foi a sentença proferida em 14 de setembro de 2023 pelo magistrado Maurício Simões, juiz titular da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo, nos autos da Ação Civil Pública n° 1001379-33.2021.5.02.0004, na qual reconheceu o vínculo empregatício entre a Uber e seus motoristas, condenando a empresa a efetivar os registros nas carteiras de trabalho de todos os contratados como empregados, sob pena de aplicação de multa diária de dez mil reais para cada motorista não registrado, além de danos morais coletivos de um bilhão de reais.
Para o juiz, o fenômeno da subordinação tem sofrido ajustes e adequações ao longo dos séculos, em razão das diversas alterações na realidade do mundo do trabalho, de modo que defende estar presente nas relações entre Uber e seus motoristas, ainda que não necessariamente da forma tradicional. A empresa recorreu da decisão, estando o processo aguardando o julgamento do recurso para a apreciação da matéria.
Com o objetivo de dirimir a preocupante insegurança jurídica e a lacuna legislativa, foi instalada pelo Decreto n° 11.513/2023, em 5 de junho de 2023, a chamada “Mesa do Grupo do Trabalho dos Aplicativos”, formada por representantes do governo, das empresas e dos trabalhadores, cuja finalidade, nos termos da epígrafe do instrumento legal, é de “elaborar proposta de regulamentação das atividades de prestação de serviços, transporte de bens, transporte de pessoas e outras atividades executadas por intermédio de plataformas tecnológicas”. Assim, a Mesa elaborou o Projeto de Lei Complementar (PLP) n° 12/24 , apresentado em 5 de março de 2024 pelo Presidência da República.
O referido PLP, atualmente em fase de apreciação pela Câmara dos Deputados, regulamenta o trabalho de motorista de aplicativo para transporte de passageiro, objetivando, segundo o Poder Executivo, garantir aos motoristas determinados direitos trabalhistas e previdenciários, sem, contudo, interferir na autonomia de escolha dos horários e jornadas de trabalho.
No Projeto, a redação original propõe a fixação de remuneração mínima de R$ 32,10 por hora trabalhada – dentre a qual R$ 8,03 são referentes aos serviços prestados e os outros R$24,07 para cobrir custos com despesas e manutenção do veículo e aparelho celular utilizados na atividade –, compreendido nesta somente o período entre a aceitação da viagem pelo motorista e a chegada do usuário ao destino, não englobando o tempo de espera. O PLP determina, ainda, ser vedado às empresas a limitação de distribuição de viagens quando o trabalhador atingir a remuneração horária mínima.
Além disso, a partir da Proposta os motoristas passam a ser enquadrados como contribuintes individuais para fins previdenciários, classificados como “trabalhador autônomo por plataforma”, com recolhimentos dos motoristas e das empresas equivalentes a, respectivamente, 7,5% e 20% do salário de contribuição, ou seja, R$ 8,03 por hora. Com isso, a partir das alterações trazidas pelo PLP, todos os motoristas passarão a ser beneficiários dos auxílios fornecidos pela Previdência Social, além de que as motoristas mulheres terão direito a receber auxílio-maternidade.
Quanto à jornada, o Projeto de Lei determina ser de no máximo 12 horas diárias, não estabelecendo quantidade mínima. Além disso, prevê não haver exclusividade entre as empresas e os motoristas, com a autonomia destes para organizar seus horários de trabalho conforme desejar, bem como dispõe expressamente que não há configuração de relação de emprego entre as partes e que demais direitos não previstos deverão ser pactuados mediante negociação coletiva sindical.
Ficou estabelecido, ademais, que os motoristas receberão relatórios mensais constando detalhadamente as horas trabalhadas e a remuneração total, bem como que os motoristas apenas podem ser excluídos pelas empresas de forma unilateral em caso de fraudes, abusos ou mau uso da plataforma, sempre garantido o direito de defesa e contraditório.
Contudo, apesar de prever a fixação de uma remuneração mínima e manter a autonomia dos horários de trabalho, principais pontos demandados pelos motoristas e seus representantes, o Projeto de Lei não está sendo bem recebido por quem já atua no mercado. Dentre os principais pontos de crítica, os motoristas vêm destacando que não há sentido em fixar um valor de remuneração com base em horas trabalhadas, principalmente quando não considerado o tempo de espera entre as corridas, uma vez que o desgaste do veículo e suas despesas são todos proporcionais à quilometragem percorrida, bem como que a forma com que os aplicativos calculam atualmente, levando em consideração diversas características das viagens para majorar seus valores – como perigo, condições climáticas, horário, entre outros –, o que é mais benéfico financeiramente.
Não somente isso, como também se discute sobre o valor que passará a ser compulsoriamente recolhido à Previdência Social, o que reduzirá ainda mais o montante final que ficará para os motoristas, uma vez que, atualmente, o recolhimento não é obrigatório e, segundo dados apontados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022 apenas 23,6 % dos motoristas de aplicativos eram contribuintes, cujo recolhimento podia ser, além da modalidade de “contribuinte individual”, via “Microempreendedor Individual” (MEI), de alíquota de 5% sobre o salário mínimo.
Portanto, ainda há um extenso caminho para a regulamentação da relação jurídica entre os motoristas e as empresas de transporte por aplicativo, o que começou a ser delineado pelo Projeto de Lei Complementar 12/24, o qual, contudo, vem gerando discussões acerca de suas implicações, principalmente financeiras. A busca por um entendimento adequado acerca do tema segue como um grande desafio para o ordenamento jurídico e legislativo brasileiro.
Referências:
Uber Newsroom. Fatos e Dados sobre a Uber. Disponível em: https://www.uber.com/pt-br/newsroom/fatos-e-dados-sobre-uber/
Projeto de Lei Complementar n.12/2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2391423&filename=PLP%2012/2024
Agência Câmara de Notícias. Proposta do Executivo regulamenta o trabalho de motorista de aplicativo. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1041667-proposta-do-executivo-regulamenta-o-trabalho-de-motorista-de-aplicativo-prioridade