A culpa grave como fator de incerteza histórica nos contratos
Há algum tempo, temos nos deparado com cláusulas limitadoras de responsabilidade que, na tentativa de salvaguardarem as partes que as redigem, terminam trazendo para os contratos fatores de incerteza.
Uma profusão de contratos, sobretudo aqueles vinculados a instituições financeiras, circunscrevem certas hipóteses de indenização por inadimplemento contratual à aferição “culpa grave” no comportamento da parte inadimplente.
A problemática desse tema recai sobre o prejuízo à dinâmica contratual das relações que optam por vincular a configuração do inadimplemento à presença de uma “culpa grave”; porque, ao fim, permanece a dúvida sobre exatamente qual seria o significado dessa expressão, muitas vezes importadas e impostas por decorrência de minutas contratuais transnacionais.
Responsabilidade Contratual no Brasil
No Brasil, a responsabilidade contratual tem por padrão o disposto no art. 392 do Código Civil, segundo o qual a parte contratante que auferir proveito deverá responder por “simples culpa” nos contratos benéficos ou, aos não aufira nenhum proveito, por “dolo”. Se o contrato for oneroso, por outro lado, cada parte deverá responder igualmente por “culpa”[1].
Há, apenas, culpa e dolo. Não há referência a uma culpa “grave”.
Na história do pensamento jurídico brasileiro, para se procurar um paralelo dogmático com a “culpa grave” seria necessário retornar para antes do Código Civil de 1916. E isso tem sua razão, pois o direito brasileiro optou há mais de um século pelo paradigma da culpa unitária, rompendo com uma tradição que remontava aos temos do direito romano[2].
O Conceito de Culpa e Dolo no Direito Civil
A responsabilidade civil no direito clássico, especialmente aquela relacionada aos contratos de boa-fé – caracterizados por aqueles contratos marcados por obrigações bilaterais recíprocas cujo regime jurídico era flexível na avaliação da responsabilidade das partes – exigia um dever de lealdade por parte do devedor perante o credor. Essa falta de lealdade, isto é, essa falta de diligência necessária (negligência) foi chamada pela jurisprudência de “culpa”[3].
A “culpa”, porém, é um desenvolvimento tardio do direito romano[4]. Ela só seria generalizada como parâmetro de aferição de responsabilidade obrigacional pelo direito pós-clássico[5]. E, a partir desse contexto, a jurisprudência viria a elaborar uma teoria sobre os distintos graus de culpa, repartindo-a em “culpa levissima”, “culpa levis” e “culpa lata”. A culpa propriamente dita é somente a “levis”, enquanto a “culpa lata” era equiparada ao dolo: “lata culpa dolo equiparatur”[6].
É certo que os textos romanos foram recepcionados pelos juristas medievais e modernos tal como se encontram com a conhecida divisão da culpa[7]. E essa repartição, ao ser recebida pelos juristas modernos, perdurou ao longo da tradição brasileira.
No texto das Ordenações Filipinas, vigentes até nosso primeiro Código Civil, também se pode encontrar essa divisão. Em uma passagem sobre o contrato de comodato (Liv. 4, t. 53, 2) está registrado que: “E porque este contracto se faz regularmente em proveito do que recebe a cousa emprestada, e não do que a empresta, fica obrigado aquelle, aque se empresta, guarda-la com toda diligência, como se fora sua. E não somente se lhe imputará o dolo e culpa grande, mas ainda qualquer culpa leve e levíssima, assi pela cousa principal, como pelo accessorio. […]”.
A mesma regra reaparece no art. 501 da Consolidação das Leis Civis de A. Teixeira de Freitas, que também dispõe: “É obrigação do comodatário guardar a cousa emprestada com o maior cuidado, tanto a principal, como o seu accessorio; e responde, não só pelo dolo e culpa larga; como pela culpa leve, e levíssima”.
- Teixeira de Freitas[8] é expresso ao reconhecer que a distinção entre “culpa lata”, “leve” e “levíssima” remontaria aos textos romanos, definido que a “Culpa lata (ou grave – grande) é a falta com intenção dolosa, ou por negligência impropria do comum dos homens”. A equiparação entre “culpa lata” e “dolo” também é registrada por M. A. Coelho da Rocha[9], que, apoiado nos textos romanos, diz: “Para o fim da indenização das perdas […] a culpa lata é equiparada ao dolo”.
A presença de uma “culpa lata” ou “grave” pode ainda ser encontrada nos sistemas jurídicos que não adotaram a ideia de culpa unitária. Os Códigos Civis do Chile, do Ecuador e da Colômbia, cujos textos originam-se do projeto de Andrés Bello, ainda mantém a divisão. E, nesse contexto, art. 44 do Código Civil chileno, o art. 29 do Código Civil equatoriano e o art. 63 do Código Civil colombiano expressamente dispõem que “Culpa grave, negligencia grave, culpa lata […] Esta culpa en materias civiles equivale al dolo”.
Mas mesmo naqueles sistemas, a “culpa grave” viu seu conteúdo semântico específico ser esvaziado, sendo objetivamente incorporado ao “dolo”; ou melhor, sendo concretizado como uma manifestação objetiva do dolo. Uma espécie de presunção que permite aferir o dolo indiretamente[10].
O que, de certo modo, é consiste na solução encontrada para o problema crônico do conceito; já que, como visto, os próprios jurisconsultos antigos já tendiam a equiparar a “culpa lata” ou “grave” ao “dolo”.
Equívoca Utilização da Culpa Grave em Contratos Modernos
Como aponta L. F. Silveira[11], é muito provável que essa “culpa grave” que se encontra atualmente seja um transplante da “gross negligence” do Common Law, sendo que sua tradução para o sistema de direito romano-germânico ainda é carregada de incertezas.
A grande questão, portanto, repousa em saber qual o sentido que essa expressão poderia no direito brasileiro. Sobre isso, cabe reiterar a lição de F. C. Pontes de Miranda[12], segundo quem as normas jurídicas nem sempre apresentam um grau adequado de lógica. Os enunciados de direito podem se encontrar incompletos e demandar uma composição pela interpretação.
Daí a conclusão pertinente de F. C. Pontes de Miranda[13] que pode ser aplicada à redação das cláusulas limitadoras de responsabilidade: “Não importa a redação, a formulação da regra jurídica; o que importa é o seu conteúdo, o seu sentido, tal como resulta do que ‘se diz’ nela e do que ‘é dito’ no sistema”. E há muito pouco sendo dito no sistema jurídico brasileiro.
A ideia de “culpa grave” aparece ocasionalmente, mas sempre restrita a alguns subsetores específicos da nossa jurisprudência, como aquele dos contratos de seguro[14], nos contratos de transporte[15], casos de litigância de má-fé[16] e em relação aos ilícitos por improbidade administrativa[17].
Trata-se de uma expressão praticamente sem qualquer conteúdo autônomo no pensamento jurídico corrente; o que dificulta ainda mais a interpretação do termo. Quando o termo “culpa grave” é utilizado pelos tribunais, ele normalmente está acompanhado do “dolo” (culpa grave ou dolo; dolo e culpa grave, etc.), o que sugere que no sistema jurídico brasileiro a “culpa grave” serve apenas como um dos componentes de uma hendíade, de uma figura retórica que emprega dois substantivos coordenados em substituição de um único conceito: “culpa grave ou dolo”, no lugar do simples “dolo”.
Além de terem de lidar com a potencial inutilidade do conceito, conforme aponta a herança jurídica brasileira, as cláusulas contratuais contemporâneas que preveem a “culpa grave” como hipótese de responsabilidade contratual contêm um outro problema. Dificilmente seria possível dizer que os redatores dos contratos que se encontram no atual ambiente jurídico brasileiro tenham tido a intenção de repristinar um conceito direito romano ou das velhas Ordenações do Reino.
Conclusão
Na tentativa reduzir o risco contratual, o uso da “culpa grave” como critério para apuração da responsabilidade contratual pode estar instaurando – em sentido contrário ao propósito negocial em concreto – relação negociais inseguras. Como visto, não se trata de um termo corrente no direito brasileiro vigente. O seu empréstimo da prática contratual de Common Law encontra obstáculo na própria tradição romano-germânica, que carrega o histórico já em grande parte abandonado da tripartição da culpa.
É difícil delinear exatamente o que se pode entender por “culpa grave” e como ela poderia ser distinguida do “dolo”, tanto é assim que – historicamente – ambos conceitos foram equiparados na legislação civil. A tripartição clássica da “culpa” normalmente seria avaliada a partir do tipo abstrato do “bom pai de família”, daquele homem prudente e cuidadoso; do exemplo ideal de membro da sociedade[18].
Mas não se trata de um critério transponível aos padrões de conduta de instituições complexas, como bancos ou grandes grupos empresariais. Assim, lançar mão de um conceito como a “culpa grave” na definição do suporte fático das cláusulas de responsabilidade contratual não apenas reinicia um debate superado no direito brasileiro, como insere nas relações comerciais uma janela de incerteza, frustrando o ambiente desejado de certeza e previsibilidade.
[1] No caso das obrigações de dar, a responsabilidade contratual inadimplemento decorrente da deterioração da coisa também está atrelada à “culpa” (art. 234, 238, 239, 240 do Código Civil); igualmente, nas obrigações de fazer e de não-fazer, a “culpa” também é o critério fixado para configuração da responsabilidade do devedor (art. 248 e 250 do Código Civil). A aferição da “culpa” na responsabilidade por inadimplemento também retorna no contexto das obrigações alternativas (art. 254, 255 e 256 do Código Civil), das obrigações divisíveis (art. 263, §1º, do Código Civil) e das obrigações solidárias (art. 279 do Código Civil). Nos contratos, a “culpa” também está presente na dinâmica do contrato de locação (art. 567 do Código Civil), de prestação de serviços (art. 600 do Código Civil), de empreitada (art. 612, 613, 625 do Código Civil), de depósito (art. 640, parágrafo único, do Código Civil), do mandato (art. 667, caput e §2º, e 678 do Código Civil), da comissão (art. 697 do Código Civil), de agência (art. 718 do Código Civil), de transporte (art. 735 do Código Civil), de seguro (art. 769, §1º, do Código Civil).
[2] Gomes, Orlando, Responsabilidade civil, Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 71.
[3] D’Ors, Álvaro, Derecho Romano Privado, 10ª, Pamplona, EUNSA, 2004, p. 547-548.
[4] Arangio-Ruiz, Vincenzo, Diritto privato romano,14ª, Napoli, Jovene, 1960, p. 385.
[5] D’Ors, Álvaro, Derecho Romano Privado, 10ª, Pamplona, EUNSA, 2004, p. 549.
[6] Cannata, Carlo Augusto, La responsabilità contrattuale, in Paricio, Javier (org.), Derecho Romano de Obligaciones – Homenaje a Profesor José Luis Murga Gener, Madrid, 1994, p. 162. Sobre isso, confira-se D. 16, 3, 32, em que Celso diz: “Quod nerva diceret latiorem culpam dolum esse, Proculo displicebat, mihi verissimum videtur”. Também Ulp. ad. Ed. D. 11, 6, 1, 1, no qual Ulpiano registra que “[…] lata culpa plane dolo comparabitur.”.
[7] Carrá, bruno Leonardo Câmara, A doutrina da tripartição da culpa – uma visão contemporânea, in RDCC 13 (2017), p. 201.
[8] Consolidação das Leis Civis, Vol. 1, 3ª ed., Brasília, Senado Federal, 2003, p. 340, n. 28. A definição é posteriormente reiterada no seu Vocabulário Jurídico: “Culpa lata, ou grave, ou grande, que se reputa igual ao dolo, é a falta com intenção de faltar, ou por negligência imprópria do comum dos homens” (cf. Teixeira de Freitas, Augusto, Vocabulário Jurídico – Com apêndices, São Paulo, Saraiva, 1983, p. 38).
[9] Instituições de Direito Civil, t. 1, São Paulo, Saraiva, 1984, §126, p. 65. Sobre o tema, o próprio M. A. Coelho da Rocha registra na Nota F ao §126 (p. 216) o seguinte: “A graduação da culpa em ‘lata’, ‘leve’ e ‘levíssima’ entre nós é legal, porque se acha estabelecida na Ordenação, Liv. 4, tít. 53, §2, e indicada no Código Comercial, art. 302. Ela foi introduzida, e geralmente seguida por todo os intérpretes e tratadistas de direito romano, e acha-se adotada e aplicada mui circunstanciadamente no Código da Prússia e nos alemães”.
[10] Rio, Cristián Banfi, La asimilación de la Culpa Grave al Dolo em la Responsabilidad Contractual en Chile, in Estudios e Investigaciones – Derecho Civil 27 (2000), p. 291.
[11] Danos indiretos e culpa grave em contrato de construção, São Paulo, Almedina, 2022, p. 36-37.
[12] Tratado de direito privado – Parte geral – tomo I – Introdução. Pessoas físicas e jurídicas, 3ª ed., Rio de Janeiro, Borsoi, 1970, §18, 5, p. 66.
[13] Tratado de direito privado – Parte geral – tomo I – Introdução. Pessoas físicas e jurídicas, 3ª ed., Rio de Janeiro, Borsoi, 1970, §18, 5, p. 66.
[14] Confira-se a recente decisão do STJ no AgInt no AREsp. Nº 2.096.278-SP, Rel. Maria Isabel Gallotti, Dje 11/02/2023: “O agravamento do risco não se dá somente quando o próprio segurado se encontra alcoolizado na direção do veículo; também abrange os condutores principais (familiares, empregados e prepostos), e envolve tanto o dolo quanto a culpa grave do segurado, que tem o dever de vigilância e o dever de escolha adequada daquele a quem confia a prática do ato”.
[15] Por todos, confira-se a redação da Súmula nº 145 do STJ: “No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave”.
[16] A título exemplificativo, cf. AgInt nos EDcl no AREsp n. 1.485.298/SP, Rel. Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe de 12/2/2020: “[…] é preciso a caracterização de culpa grave ou dolo por parte do recorrente, não podendo ser presumida a atitude maliciosa”.
[17] O art. 28 da LIDB, conforme redação pela Lei nº 13.655/2018, introduziu a responsabilidade do agente público por “dolo ou erro grosseiro”. O art. 12, §1º, do Decreto nº 9.830/2019, que regulamentou o dispositivo, descreve o erro grosseiro como “aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”.
[18] Gomes, Orlando, Responsabilidade civil, Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 71.