Contornos gerais da alienação fiduciária no Brasil segundo o Marco Legal das Garantias

Yasmin Peixoto Braga

Contornos gerais da alienação fiduciária no Brasil segundo o Marco Legal das Garantias

Introdução

A promulgação da Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023, conhecida como Marco Legal das Garantias, trouxe uma série de alterações para a alienação fiduciária de imóveis, regulada pela Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997 e pela Lei nº 13.476, de 28 de agosto de 2017. Essas mudanças, embora tenham sido apresentadas como uma forma de modernizar os procedimentos de garantia de crédito, levantam questões importantes sobre a eficácia e aplicabilidade dessas novas medidas.

 

Alienação Fiduciária: Uma Visão Geral

As garantias desempenham um papel crucial na formalização de transações jurídicas, uma vez que a concessão de crédito está intrinsecamente ligada ao risco associado à transação. Quanto menor o risco, mais favoráveis são as condições para a obtenção de crédito. Nesse contexto, as garantias proporcionam maior segurança às operações, reduzindo o risco no momento da captação de recursos e oferecendo condições mais vantajosas para quem deseja obtê-lo (SILVA, 2023).

Sob essa ótica, assim como os institutos jurídicos se adaptam ou são criados para atender às necessidades da sociedade, as relações de crédito também buscam alcançar um nível de sofisticação cada vez maior, visando oferecer maiores benefícios, especialmente no que diz respeito à implementação de medidas que permitam reduzir custos e demoras (PINHEIRO, 2022).

Foi nesse cenário que surgiu a alienação fiduciária como uma modalidade de garantia no Brasil, ainda na década de 90, vindo a ser utilizada especialmente em operações de crédito imobiliário (PINHEIRO, 2022). Trata-se de um negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, transfere ao credor, ou fiduciário, a propriedade resolúvel e a posse indireta de um bem infungível ou de um conjunto de bens infungíveis, fracionados ou não, tornando-se o credor proprietário e possuidor direto dos mesmos, até a liquidação da dívida garantida (SILVA, 2023).

A alienação fiduciária é, portanto, uma forma eficaz de garantir o cumprimento de uma obrigação, proporcionando ao credor uma maior segurança jurídica em relação ao pagamento da dívida.

A alienação fiduciária é regulada pela Lei nº 9.514/97, que instituiu a alienação fiduciária de coisa imóvel e o Sistema de Financiamento Imobiliário no Brasil. E, mais recentemente, a Lei nº 14.711/2023, conhecida como Marco Legal das Garantias, trouxe importantes alterações para a alienação fiduciária, introduzindo novas modalidades e procedimentos, que serão discutidos em detalhes no próximo tópico deste artigo.

 

Alienação Fiduciária Estendida e Superveniente

Sob a ótica de propor melhorias e atualizações ao instituto, em 2020, foi editada a Medida Provisória (MP) nº 992/2020, que permitiu o compartilhamento da alienação fiduciária em garantia. Essa MP veio a caducar, e, em 2021, o Projeto de Lei (PL) n. 4.188/2021 propôs novamente essa possibilidade de compartilhamento, agora sob outro nome técnico, a chamada extensão, e prevendo ainda a possibilidade da alienação fiduciária superveniente quando da promulgação da Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023, chamada de Marco Legal das Garantias (BRASÍLIA, 2023).

Por meio da extensão da alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel, é admitido que o mesmo bem seja objeto de garantia de mais de uma dívida do mesmo credor. A medida visa evitar a problemática conhecida como “capital morto” (SILVA, 2023), na qual um conjunto de ativos é excluído da lista de possíveis garantias, em decorrência da base legal vigente.

Até então, um imóvel apenas poderia ser oferecido uma única vez em alienação fiduciária em garantia, e para que houvesse nova alienação fiduciária, era necessário cessar a primeira, fazendo com o que o bem retornasse ao patrimônio do devedor fiduciante.

Segundo a redação do Marco Legal, que regulou a extensão da alienação fiduciária em seu art. 4º, alterando a Lei nº 13.476/2017, por meio da inserção do art. 9º-A, permite-se que um mesmo imóvel seja utilizado para garantir uma nova dívida autônoma, diferente da original, desde que contratada com o mesmo credor, respeitando a limitação do valor do bem imóvel em questão, e o prazo da garantia original, de acordo com os incisos do referido artigo inserido. Veja-se:

“Art. 9º-A Fica permitida a extensão da alienação fiduciária de coisa imóvel, pela qual a propriedade fiduciária já constituída possa ser utilizada como garantia de operações de crédito novas e autônomas de qualquer natureza, desde que:

I – sejam contratadas as operações com o credor titular da propriedade fiduciária; e

II – inexista obrigação contratada com credor diverso garantida pelo mesmo imóvel, inclusive na forma prevista no § 3º do art. 22 da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997.” (BRASÍLIA, 2017)

Já no que tange a alienação fiduciária superveniente, nova modalidade apresentada pelo Marco Legal, instituída em seu art. 2º, vindo a alterar o art. 22 da Lei nº 9.514/97, esta permite que o devedor estabeleça alienações fiduciárias sucessivas sobre o mesmo imóvel para garantir novas dívidas, só que dessa vez, criando a possibilidade de diversificação de credores. Frisa-se, no entanto, que as novas alienações só terão eficácia após o cancelamento da alienação fiduciária anteriormente constituída, em ordem crescente de constituição (§4º do art. 22):

“Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.

[…]

§ 4º Havendo alienações fiduciárias sucessivas da propriedade superveniente, as anteriores terão prioridade em relação às posteriores na excussão da garantia, observado que, no caso de excussão do imóvel pelo credor fiduciário anterior com alienação a terceiros, os direitos dos credores fiduciários posteriores sub-rogam-se no preço obtido, cancelando-se os registros das respectivas alienações fiduciárias.” (BRASÍLIA, 1997)

Embora a intenção do legislador fosse ampliar a possibilidade de utilização de bens imóveis como garantia de empréstimos e financiamentos, movimentando a economia e o cenário das transações de mercado, o Marco das Garantias acabou por criar algumas limitações à possibilidade de utilização do imóvel como garantia de dívidas contraídas dentro e fora do Sistema Financeiro Nacional (RIBEIRO, 2020).

Isso pois, quanto à extensão da alienação fiduciária, nota-se uma possível insegurança jurídica gerada pela “sobreposição” de garantias sobre o mesmo bem, ainda que limitadas ao valor do imóvel, possibilitando um cenário de desorganização interna do devedor, gerando insegurança ao mercado quanto a realização de novas operações.

Na mesma linha, tem-se o risco de criação de um cenário de garantias fictícias, em que o valor do imóvel é inferior ao total das dívidas garantidas, no que tange as alienações fiduciárias supervenientes. Além disso, a lei não esclarece como serão resolvidos os conflitos entre os credores em caso de inadimplência do devedor, sendo necessário que os atuantes no mercado criem analogias jurídicas para resolução da lacuna deixada pelo legislador.

No entanto, não se ignora os traços positivos do Marco Legal das Garantias, que veio para ampliar as modalidades de garantias no cenário imobiliário, modernizar o mercado de crédito, e trazer mais segurança e menos burocratização para o devedor fiduciário, além de regulamentar uma prática que já era comum ao mercado, no que tange à extensão da alienação fiduciária, regulamentando tal prática em benefício da segurança do devedor.

 

Conclusão

Em suma, é inegável que o Marco Legal das Garantias dá um passo importante para a evolução do mercado de crédito brasileiro. As inovações trazidas pela extensão da alienação fiduciária e pela alienação fiduciária superveniente têm o potencial de dinamizar o mercado imobiliário, proporcionando maior flexibilidade na utilização de bens imóveis como garantia de empréstimos e financiamentos.

No entanto, é preciso ter cautela. A implementação dessas novas modalidades de garantia levanta questões complexas que exigem uma análise cuidadosa. A possibilidade de “sobreposição” de garantias e a criação de garantias fictícias são questões que podem gerar insegurança jurídica e desorganização interna do devedor, além da clara omissão do legislador quanto à resolução de conflitos entre credores em caso de inadimplência do devedor.

 

Referências Bibliográficas

ALVES, José Carlos Moreira. Da alienação fiduciária em garantia. São Paulo: Saraiva, 1973.

BRASÍLIA. Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997. Brasília, 1997. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9514.htm. Acesso em: 28/06/2024.

BRASÍLIA. Lei nº 13.476, de 28 de agosto de 2017. Brasília, 2017. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13476.htm. Acesso em: 04/07/2024.

BRASÍLIA. Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023. Brasília, 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14711.htm. Acesso em: 28/06/2024.

DANTZGER, Afranio Carlos Camargo. Alienação fiduciária de bens imóveis. São Paulo: Método, 2007.

LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Da alienação fiduciária em garantia de bens imóveis (notas para sua estruturação). Revista de direito imobiliário, São Paulo, v. 50, n. 44, 1998.

PINHEIRO, Fábio José de Almeida Gomes. Alienação fiduciária em garantia de bens imóveis: natureza e regime jurídicos. Programa de Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2022. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2131/tde-07102022-115256/publico/6483272MIO.pdf. Acesso em: 01/07/2024.

RIBEIRO, José Alves. MP limita alienação fiduciária de imóvel. Valor Econômico, Legislação, 2020. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2020/08/13/mp-limita-alienacao-fiduciaria-de-imovel.ghtml. Acesso em: 03/07/2024.

SILVA, Júlia Vitória Scartezini da. Extensão da Alienação Fiduciária de Coisa Imóvel e Sua Compatibilidade com as Bases Dogmáticas do Direito Civil Brasileiro. UNB, Programa de Pós-graduação em Direito. Brasília, 2023. Disponível em: http://icts.unb.br/jspui/bitstream/10482/47302/1/JuliaVitoriaScarteziniDaSilva_DISSERT.pdf. Acesso em: 01/07/2024.

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