Tempo, Ruína e Empreitada
A execução do contrato de empreitada apresenta certa complexidade em virtude de sua prolongada eficácia pós-contratual. A exemplo,
o caso em que se contrata um empreiteiro para construir- uma casa. Quinze anos após entregue, muros e piso externos começam a ceder e laudo de engenharia aponta falha na edificação. A quem recai o a responsabilidade pelo prejuízo: ao empreiteiro ou ao proprietário?
O art. 618 do CC/02 como regra excepcional
O enunciado do art. 618 do Código Civil dispõe que empreiteiro responderá pelo prazo de 5 anos “pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais como do solo”; o qual é complementado por outro de 180 dias, previsto no parágrafo único do mesmo artigo, contados a partir do “aparecimento do vício ou defeito”.
Tal regra especial que excetua a norma geral de responsabilidade no contrato de empreitada, segundo a qual a responsabilidade do empreiteiro cessa a partir do momento da entrega e aceitação da obra. Trata-se do art. 611 do CC/02 que atribui os riscos contratuais ao empreiteiro “até o momento da entrega da obra, a contento de quem a encomendou”, desde que forneça os respectivos materiais.
Se fornecer somente a mão de obra, a regra será aquela do art. 612 do CC/02, que atribui ao dono da obra os seus respectivos riscos, desde que não tenham sido causados por culpa do empreiteiro.
Ainda, a norma do art. 618 do CC/02 aplica-se exclusivamente às chamadas “construções consideráveis”. Tal regra destina-se a lidar com os vícios ocultos presentes nas empreitadas substanciais, uma vez que – ao contrário das obras de menor porte – nesse tipo de construção eles costumam demorar a se manifestar. Se a obra em questão apresentar porte reduzido, a regra será aquela do art. 441 do CC/024.
- Prazos legais
O maior problema do art. 618 do CC/02refere-se aos seus prazos. Se a responsabilidade do empreiteiro perdura até 5 anos após a entrega da obra, questiona-se a compatibilidade seu parágrafo único, que dispõe que “decairá o direito” se o dono da obra não propuser ação em de 180 dias do aparecimento do vício.
Note-se que as previsões não são autônomas. Não é possível aplicar o parágrafo único sem verificar a incidência de seu caput
Decair é termo técnico para indicar decadência; a qual não incide sobre pretensões, mas sobre direitos potestativos. Daí que o prazo do parágrafo único não deveria incidir sobre eventuais pretensões do dono da obra à indenização por perdas e danos ou alguma outra prestação qualquer do empreiteiro, mas apenas sobre o exercício de direitos potestativos (ou formativos positivos ou negativos), tal como o direito de resolução contratual, redibição ou abatimento do preço.
Porém permanece a dúvida sobre qual o prazo prescricional para se exigir o pagamento de quantias certas. A primeira inclinação seria que esse tipo de pretensão estaria sujeita ao prazo de 5 anos no art. 618, caput, do CC/02.
Uma análise mais atenta indicará que o prazo de cinco anos não limita o exercício de nenhuma pretensão ou direito formativo. Dizer que o empreiteiro “responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo” não é o mesmo que dizer que o dono da obra “poderá exigir” ou “poderá exercer, resolver, constituir, desconstituir, etc.”.
Isso porque o prazo de 5 anos não é prazo prescricional ou decadencial, mas o que se acostumou chamar de “prazo de garantia”.
Na verdade, trata-se de verdadeira obrigação pós-contratual do empreiteiro. As obrigações de garantia são caracterizadas por terem como conteúdo o dever de “eliminação de um risco que pesa sobre o credor”, que terá eficácia haja ou não a constatação de um efetivo defeito. Consequentemente, não se trata de prazo prescricional, mas de prazo de vigência obrigacional; de forma que, uma vez transcorrido, extingue-se esse específico dever do empreiteiro.
Assim, o prazo de 5 anos será a janela de tempo na qual o empreiteiro estará vinculado a eliminar o risco do defeito constatado ao longo desse período. Descoberto o vício até então oculto, surgirá uma nova posição jurídica a favor do dono da obra, que poderá ser um direito potestativo ou uma pretensão indenizatória. No primeiro caso, o dono da obra deverá exercê-lo no prazo de 180 dias (art. 618, parágrafo único, CC/02); mas no segundo caso, sua pretensão estará sujeita ao prazo comum de 10 anos das pretensões indenizatórias.
Veja-se o entendimento do STJ resumido pela Min. Nancy Andrighi no julgamento do AgInt. No AREsp. Nº 2.092.461-SP, julgado em 16 de junho de 2023:
“[…] sob a regência do Código Civil/2002, se o comitente constatar o vício da obra dentro do prazo quinquenal de garantia, poderá, a contar do aparecimento da falha construtiva: i) redibir o contrato ou pleitear abatimento no preço, no prazo decadencial de 180 dias; ii) pleitear indenização por perdas e danos, no prazo prescricional de 10 anos”.
Tal entendimento parece dar excessivo valor ao conteúdo textual do art. 618 CC/02, delimitando sua aplicação para potencializar a proteção do dono da obra. A princípio não haveria razões para se crer que o parágrafo único do mencionado artigo tenha sido escrito com a consciência das diferenciações científicas entre prescrição e decadência, de modo que o termo “decairá” ali presente poderia muito bem ter sido empregado de maneira impensada.
- O Código de Defesa do Consumidor
Por fim, faça-se uma ressalva quanto às relações de direito do consumidor, em virtude da incidência conjunta do art. 26, §3º, do CDC.
Nesse sentido é o entendimento que tem sido veiculado pelo STJ ao exemplo do que diz a Min. Nancy Andrighi no mesmo julgado anteriormente citado:
“[…] em se tratando de relação jurídica regida pelo Código de Defesa do Consumidor, como é o caso do presente contrato de empreitada, não há essa exigência de que os vícios apareçam no referido prazo de 5 anos […]Com efeito, sob a regência do CDC, o prazo para o consumidor reclamar de vício oculto somente se inicia no momento em que ficar evidenciado o dano, nos termos do art. 26, §3º, do referido diploma legal, ficando o consumidor resguardado de vícios na obra, ainda que estes surjam após o prazo de 5 anos do seu recebimento”.
Mas, esse entendimento parece deliberadamente ignorar a expressão “prazo decadencial”, interpretando o dispositivo tanto para pretensões indenizatórias quanto para direitos potestativos.
Referências:
Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, Vol. 4, 6ª ed., Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1943, p. 432-433.
Lopez, Teresa Ancona, Comentários ao Código Civil – parte Especial – Das Várias Espécies de Contratos – Da Locação de Coisas; Do Empréstimo; Da Prestação de Serviços; Da Empreitada; Do Depósito (Arts. 565 a 652), São Paulo, Saraiva, 2003, p. 295-296.
Amorim Filho, Agnelo, Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis, in Mendes, Gilmar Ferreira e Stoco, Rui (org.), Doutrinas Essenciais – Direito Civil – Volume V – Prescrição, Decadência e Prova, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011, p. 43.
Lopez, Teresa Ancona, Comentários ao Código Civil – parte Especial – Das Várias Espécies de Contratos – Da Locação de Coisas; Do Empréstimo; Da Prestação de Serviços; Da Empreitada; Do Depósito (Arts. 565 a 652), São Paulo, Saraiva, 2003, p. 300.
Comparato, Fábio Konder, Obrigações de meios, de resultado e de garantia, in Nery Jr., Nelson e Nery, Rosa Maria (org.), Doutrinas Essenciais – Responsabilidade Civil – Volume V – Direito Fundamental à Saúde, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 347
Confira os comentários ao art. 618, itens 4 e 5 de Nery Jr., Nelson e Nery, Rosa Maria de Andrade, Código Civil Comentado, 11ª Ed., São Paulo, RT, 2014. Mencionados autores, porém, parecem ter se alinhado ao restante do entendimento jurisprudencial atual em obra posterior (cf. Instituições de direito civil – contrato – Volume III, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2016, p.350-351)