Usufruto de ações e suas implicações

André A. B. Hoffmann, João Vítor L. Cunha e Lucas F. G. Bento
André A. B. Hoffmann, João Vítor L. Cunha e Lucas F. G. Bento

O instituto do usufruto é amplamente utilizado dentro do âmbito patrimonial, seja para planejamento sucessório, otimização financeira, alocação de recursos e outros objetivos variados. Todavia, quando o bem no qual se constituí o usufruto são as ações de emissão de uma sociedade anônima, há a necessidade de se observar as particularidades do ordenamento jurídico societário e do Mercado de Valores Imobiliários.  

O USUFRUTO 

Instituto derivado do Direito Romano, o usufruto é um direito real previsto no Código Civil brasileiro, entre seus artigos 1.390 a 1.411, que pode ser de natureza contratual, quando surge devido à vontade das partes, ou legal, no caso de uma norma jurídica instituir o direito de usufruto.  

O usufruto é caracterizado pelo desmembramento e transferência, por parte do proprietário, dos direitos de usar e fruir da propriedade de um bem para um terceiro, por um período de tempo. Neste sentido, o usufruto é considerado um direito limitado, à medida que retira utilidades (uso e fruição), contudo, sem retirar a substância1 do bem. Assim, o proprietário ao conceder usufruto a algum terceiro, se torna o nú-proprietário e aquele que recebe esse direito real, o usufrutuário. 

Com isso, a posse do bem fica dividida entre posse direta, por parte do usufrutuário e posse indireta, no caso do nú-proprietário. Portanto, o usufrutuário pode perceber frutos e utilizar o bem, já, algumas garantias referentes à propriedade, como o ingresso de ação reivindicatória só é conferida ao nú-proprietário. Por fim,  ambos nú proprietário e usufrutuário têm o direito de ajuizar ações possessórias, uma vez que ambos são possuidores legítimos do bem.  

O usufruto pode ser temporário ou vitalício. No primeiro caso, sua duração deve ser determinada no ato de sua instituição, e na hipótese de pessoas jurídicas será de 30 anos o prazo máximo de extensão, sendo finalizado com o fim do tempo pactuado ou com a morte do usufrutuário (extinção no caso de pessoas jurídicas). Já o vitalício, surge quando não há acordo prévio de prazo para o usufruto e só vigora para pessoas naturais, até o seu perecimento. Ainda, o art. 1.393 do Código Civil proíbe a alienação, por parte do usufrutuário, do usufruto. Por outro lado, a nú-propriedade pode ser alienada, sem restrições. 

Diante dessa versatilidade do usufruto, este é comumente utilizado como instrumento relevante no âmbito no direito societário seja como contrapartida em negociações empresariais ou para viabilizar planejamentos patrimoniais e sucessórios. É possível determinar que o usufruto ele recaia sobre parte ou totalidade das ações/quotas de uma sociedade, além de ser possível ajustar o percentual dos frutos e quais direitos políticos serão abrangidos, existindo cenários em que tanto o usufrutuário quanto o nu-proprietário possam dividir os lucros e os direitos políticos da sociedade. 

Do ponto de vista das sociedades anônimas, é permitido aos seus acionistas constituir usufruto sobre suas ações, conforme disposto na Lei de Sociedades Anônimas – LSA (Lei 6.404/76). No entanto, segundo art. 40 da mencionada Lei, é necessário que o gravame seja averbado nos livros da companhia. Na hipótese da ação gravada ser nominativa, ou seja, expressa por meio de cautela ou certificado e na qual consta o nome do proprietário, a averbação deve ser realizada no Livro de “Registro de Ações Nominativas”. Caso a ação gravada seja escritural, ou seja, não expressa por meio de cautela ou certificado de forma que não existe movimentação física de documentos, a averbação deve ser realizada nos livros da instituição financeira, que os anotará no extrato da conta de depósito fornecida ao acionista. 

DEVERES DO USUFRUTUÁRIO DE AÇÕES 

Tendo em vista o conceito de usufruto, o usufrutuário passa a ser possuidor imediato do objeto gravado, logo, passa a ter direitos e deveres que devem ser observados para não esvaziar o usufruto. No caso do usufruto de ações, a LSA não aborda especificamente sobre os deveres do usufrutuário, sendo necessário observar as regras dispostas no Código Civil. 

Contudo, considerando as implicações práticas no caso das ações, é útil destacar o art. 1.403 do Código Civil, que incumbe ao usufrutuário: (i) as prestações e tributos devidos pela posse ou rendimentos da coisa; e (ii) as despesas ordinárias de conservação das ações2. A respeito do item (i), o usufrutuário tem o dever de pagamento das prestações e tributos da coisa fruída, inclusive de seus rendimentos (relevantes no âmbito das ações). Assim, é responsabilidade do usufrutuário pagar todos os tributos advindos dos dividendos, lucros e distribuições sobre capital no âmbito da ação. Este ponto será melhor explicado posteriormente. 

Sobre o item (ii), é preciso ter certo bom senso para não incidir em erro. É natural que ações sofram variações em seu valor de mercado por diversos motivos distintos, inclusive alheios às atitudes do usufrutuário, principalmente no âmbito do mercado das bolsas de valores. Essas variações são inerentes à natureza das ações e podem ocorrer mesmo que o usufrutuário tome todos os cuidados necessários para a conservação do bem. Nesses casos, o usufrutuário não pode ser responsabilizado pela desvalorização da ação, sob o argumento de que era responsável pela conservação do bem.   

Ainda, a LSA estabeleceu, por meio do § 2º do art, 169, que nos casos em que houver distribuição de novas ações, por meio de capitalização de lucros ou de reservas da sociedade, a condição do usufruto será estendida a elas, salvo acordado em contrário pelas partes no instrumento de constituição do usufruto. 

DIREITOS DO USUFRUTUÁRIO DE AÇÕES 

Os direitos das ações estão previstos entre os artigos 109 e 105 da LSA. Dentre eles, é possível observar direitos econômicos (por exemplo, participação nos lucros) e direitos políticos (por exemplo, direito de voto). É importante destacar que nem todas as ações de uma sociedade anônima possuem direito de voto, sendo característico das ações ordinárias e passível de restrições nos casos das ações preferenciais.  

Com o intuito de proteger a essência das ações e das vontades tanto do usufrutuário quanto do nu-proprietário, foram criadas pela LSA e jurisprudência brasileira algumas limitações e mecanismos para evitar o esvaziamento do usufruto.  

Em relação aos direitos econômicos, o art. 205 da LSA define que a sociedade pagará o dividendo das ações ao proprietário ou usufrutuário da ação. Ademais, assim como os dividendos, a participação nos lucros, a distribuição de juros sobre capital e a participação no acervo da companhia são considerados frutos civis das ações, ou seja, provenientes de relações jurídicas da utilização econômica das ações. Com base no Código Civil, art. 1.394, o usufrutuário tem direito à percepção dos frutos, logo, possui até o fim do usufruto, os direitos econômicos das ações, salvo acordo diferente entre usufrutuário e nu-proprietário. 

Discordâncias interpretativas existem sobre o cenário descrito pelo art. 1.398 do Código Civil, que trata sobre os frutos civis vencidos na data inicial e final do usufruto. O Código Civil define que os frutos civis vencidos na data inicial pertencem ao nu-proprietário e os vencidos na data final, ao usufrutuário. Porém, a LSA estabelece que os dividendos são devidos à pessoa que for titular das ações na data do ato de declaração do dividendo. Desta forma, os dividendos relativos ao exercício fiscal em que o usufrutuário estava em posse das ações, mas que foram declarados em momento posterior ao vencimento do usufruto, pertencem ao nu-proprietário, devido à sua titularidade das ações. Dessa forma, imperativo que  a LSA deva prevalecer sobre o Código Civil, por se tratar de legislação específica sobre o tema3. 

Sobre os direitos políticos, eles podem ser sintetizados em basicamente três: o direito de voto, de fiscalização e de participação em assembleias. É possível encontrar diversas teorias que definem o direito de voto no cenário do usufruto de ações, no entanto, a melhor que se aplica é a teoria dualista do voto conforme acordo prévio. Desta forma, a LSA estabelece no art. 114 que o direito de voto só pode ser exercido mediante prévio acordo entre o nu-proprietário e o usufrutuário, caso não ocorra, o poder de votar fica suspenso. Portanto, o direito de voto pode ser exercido da maneira que as partes definirem ser melhor, com a possibilidade de uma parte exercê-lo integralmente ou serem definidas as matérias em que cada um poderá exercer o direito de voto da ação gravada. 

A doutrina recomenda que tal acordo seja devidamente registrado em livro próprio, assim como o usufruto é registrado, seguindo as formalidades dispostas no art. 40 da LSA. Todavia, esse registro não é uma obrigação legal, se as partes não o realizarem, não recebem nenhum tipo de sanção. A única exigência para que o acordo sobre o direito de voto seja válido é de que ele tenha sido formalizado ou no ato de constituição do gravame ou acordo posterior, ou seja, eventuais acordos verbais e não formalizados não são considerados suficiente para assegurar o direito de voto a uma das partes, conforme entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça4 

A respeito do direito de fiscalização, cabe destacar o entendimento da II Jornada de Direito Comercial, que produziu o enunciado 63, afirma que o “nu-proprietário de quotas ou ações gravadas com usufruto, quando não regulado no respectivo ato institutivo, pode exercer o direito de fiscalização da sociedade”. Portanto, a partir desse entendimento, é possível o entendimento de que o direito de fiscalização também pode ser alvo de acordo prévio entre as partes no momento da instituição do gravame. Caso não tenha sido regulado, entende-se que ambas as partes terão direito à fiscalização da sociedade, no entanto, é possível encontrar jurisprudências5 e doutrinadores6 contrários a essa interpretação. 

Não diverso é o entendimento sobre o direito de participação em assembleias. Ou seja, a participação nelas é assunto que pode ser tratado no ato de instituição do usufruto, todavia, com seu silêncio, podem ambos, nu proprietário e usufrutuário, participar das assembleias para nelas se manifestar nos debates que afetem seus respectivos diretos. Nos parece desnecessário explicitar que o direito de participar da assembleia não se confunde com o de votar nesta. 

Por fim, a LSA ainda estabelece que o direito de preferência, inerente do nu-proprietário das ações, caso não seja exercido dentro do prazo legal de 10 dias antecedentes ao vencimento do prazo estabelecido, passa a ser do usufrutuário (art. 171, § 5º). 

ASPECTOS TRIBUTÁRIOS 

Sob o aspecto tributário, a decisão na Solução de Consulta nº 38, publicada pela Coordenação-Geral de Tributação (Cosit) no dia 30 de abril de 2018, definiu a não incidência de Imposto de Renda sobre os lucros e dividendos recebidos por usufrutuários de ações. A isenção aplica-se aos lucros e dividendos distribuídos após o mês de janeiro de 1996. O Auditor-Fiscal, afirmou em seu entendimento que, apesar de a constituição do usufruto alterar o beneficiário dos lucros e dividendos, não é o suficiente para modificar a natureza dos frutos recebidos, dessa forma cabe aplicação do artigo 10º, da Lei nº 9.249, que define a isenção de IR para esse tipo de rendimento.  

Em relação ao ITCMD (Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação), é importante notar que não existe hipótese de incidência sobre o usufrutuário, uma vez que este não possui o direito de transmissão das ações usufrutuárias. Quanto às ações com reserva de usufruto doadas, por parte do nú-proprietário, há aplicação do ITCMD, para mais, algumas legislações estaduais incidem o tributo quando há transmissão da propriedade após a morte do usufrutuário. Nesse caso, há divergência doutrinária acerca da legitimidade ou não dessa cobrança, para alguns autores, não haveria legalidade na cobrança do ITCMD no momento da extinção do usufruto (com a morte do usufrutuário, por exemplo), pois não haveria transmissão da propriedade nesse momento, ocorreria, no máximo, uma concretização da plenitude da propriedade em favor do nú-proprietário7. 

Por fim, cabe a análise de duas sociedades empresariais envolvidas em operação de usufruto oneroso, uma delas como nú-proprietária e segunda usufrutuária das ações. Nessa hipótese, a primeira companhia teria as contraprestações recebidas da outra empresa pelo usufruto utilizadas no cálculo do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ), Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL), PIS e Cofins. Contudo, os dividendos e Juros sobre o Capital Próprio devem contabilizar como despesas, para apurar os valores do IRPJ e da CSLL da empresa nú-proprietária das quotas. Por outro lado, como explicado anteriormente, por força da Solução de Consulta nº 38/18, os dividendos recebidos pela usufrutuária recebem isenção de IRPJ8. Esta receberá tributação de IRPJ, CSLL

, PIS e Cofins sobre os Juros sobre Capital Próprio, de acordo com o entendimento por parte do acórdão 1402-002.445.  

Equipe relacionada

André Augusto Braga Hoffman

João Vítor Lopes Cunha

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