Dissolução parcial de Companhias Fechadas: Para além do conceito de AFFECTIO SOCIETATIS 

João Vitor Calabuig Chapina Ohara
João Vitor Calabuig Chapina Ohara

O instituto da dissolução parcial das sociedades empresariais tem sua origem atrelada as interpretações jurisprudenciais em relação ao artigo 335, inciso V, do Código Comercial de 1850, o qual previa a possibilidade de as sociedades empresariais de prazo indeterminado serem dissolvidas pela mera vontade de apenas um dos sócios, o que privilegiava interesse patrimonial de um único sócio em detrimento da continuidade da atividade empresarial. Diante desse contexto, a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal (STF), sob fundamento do princípio da preservação empresa, consagrou a ideia de dissolução parcial, por meio do qual permite-se a dissolução do vínculo societário apenas do sócio que opte para tanto, preservando-se o restante da estrutura social.

Já sob a égide da Constituição Federal de 1988, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou a possibilidade jurídica da dissolução parcial das sociedades, definindo inclusive a quebra da affectio societatis como fundamento suficiente para aplicação do instituto nas sociedades limitadas. De acordo com o tribunal, a affectio societatis seria um elemento específico do tipo societário, de modo que a sua ausência em relação a algum dos sócios colocaria em risco a continuidade da própria empresa, razão pela qual seria possível a retirada deste sócio e preservação da relação social quanto aos demais.

Em relação às sociedades anônimas, por sua vez, a jurisprudência do STJ passou por três principais momentos3: (i) de reconhecimento da impossibilidade jurídica do pedido da dissolução parcial; (ii) de decretação da dissolução parcial, desde que a quebra da affectio societatis fosse conjugada com a não distribuição de lucros e dividendos; e (iii) de decretação da dissolução parcial de sociedades anônimas fechadas pela mera quebra da affectio societatis.

O terceiro e atual momento tem como origem os julgados dos EREsp n° 111.294 – PR e do EREsp n° 419.174 – SP, nos quais se consolidou a ideia de que as companhias fechadas de cunho familiar seriam na verdade sociedades limitadas travestidas de sociedade anônimas, prevalecendo, portanto, o intuito personae entre os acionistas, e elevando a affectio societatis ao posto de elemento essencial da sociedade.

Reproduzindo o raciocínio aplicado às sociedades limitadas, portanto, prevalece na jurisprudência a ideia de que nas sociedades anônimas fechadas familiares, a mera comprovação da quebra da affectio societatis seria motivo suficiente para decretação da dissolução parcial em relação a determinado sócio, com a respectiva apuração de seus haveres.

Não obstante o atual posicionamento jurisprudencial, entende-se que a aplicação da dissolução parcial nas sociedades anônimas requer uma análise muito mais profunda do que a constatação do mero rompimento do affectio societatis, tendo em vista que: (i) a affectio societatis não representa um elemento jurídico verdadeiramente relevante para o direito societário; e (ii) a impossibilidade de preenchimento do fim da sociedade é o que realmente importa para aplicação do instituto, conforme prevê o artigo 599, §2°, do Código de Processo Civil.

A Irrelevância da Affectio Societatis

A origem da expressão affectio societatis remete a disciplina jurídica conferida ao contrato de sociedade no direito romano, na qual era entendida como um dos elementos de especificação da societas. Apesar de o condomínio de bens não ser um elemento essencial para a constituição da sociedade, era parte importante para sua operacionalização, razão pela qual a societas se assemelhava em parte às situações de copropriedade, como por exemplo em compras conjuntas, legados a mais de uma pessoa ou herdeiros sobre um mesmo bem, sendo justamente a affectio societatis, representada por este consenso contínuo e intensificado, o seu elo de diferenciação.

A affectio societatis era tida como um elemento diferenciação do contrato de sociedade, podendo ser definida como uma qualificadora do consenso existente entre os sócios, pela qual se demonstraria, a partir de uma relação dinâmica, a vontade negocial das partes em contratarem uma sociedade. Assim como a affectio maritalis servia para distinguir a mera convivência entre as pessoas de um verdadeiro casamento, bem como a affectio tenendi separava a detenção da posse, a função jurídica da affectio societatis era de diferenciação e especificação dos contratos de sociedade.

No direito moderno, por sua vez, com exceção da França, o conceito de affectio socieitatis caiu em desuso, posto que a centralidade e diferenciação das relações societárias passaram ser observadas sob o ponto de vista do objetivo comum traçado pelos sócios, e não pela qualificação de eventual consenso estabelecido entre eles.

A centralidade do objetivo comum, desenvolvida inicialmente pela teoria do contrato plurilateral e aperfeiçoada pela teoria do associativismo, parte do pressuposto de que as figuras jurídicas associativas são organizações finalísticas, isto é, as pessoas organizam-se coletivamente e cooperam entre si, pois pretendem atingir determinado propósito. Sendo assim, o fenômeno associativo é estudado de forma ampla, abrangendo-se tanto as associações em sentido estrito quanto as sociedades, de forma que estas figuras jurídicas se distinguem justamente em razão do propósito estabelecido entre aqueles que se associam. Enquanto nas associações em sentido estrito, o objetivo final não possui fim econômico, nas sociedades, a finalidade é a divisão de lucros para os seus sócios.

A doutrina alemã aponta que a definição de um fim comum entre os sócios é o verdadeiro pressuposto de constituição do contrato de sociedade, sendo este propósito, compartilhado e consolidado no contrato social, uma verdadeira “estrela polar” para a organização societária, delimitando, inclusive, os princípios que a regem e a sua esfera de atuação.

De mesma forma, a doutrina italiana também reconhece que as sociedades comerciais se diferenciam das demais, não pelo aspecto subjetivo da affectio societatis, mas justamente em razão de seu fim comum estar voltado a produção de riquezas, o que leva às três características essenciais de sua existência: (i) a contribuição de todos os sócios para consecução do objeto social; (ii) a realização de uma atividade econômica; e (iii) a repartição de lucros.

No Brasil, o artigo 981 do Código Civil não faz nenhum tipo de menção ao conceito da affectio societatis, assim como de sua essencialidade ao contrato de sociedade, pelo contrário, apenas elenca a contribuição dos sócios e a partilha dos lucros como fatores primordiais do tipo contratual.

Entende-se, portanto, em consonância a França e Von Adamek, a affectio societatis apenas como uma expressão mítica, de origem romana, com conceito equívoco e obscuro, que nada significa para ordenamento jurídico nacional, tendo sua função original de diferenciação, inclusive, sido substituída pelo conceito de fim comum da sociedade.

Esta irrelevância jurídica da affectio societatis fica ainda mais evidente nas sociedades anônimas, sejam elas abertas ou fechadas, pois estas têm todo o modelo societário constituído legalmente em volta de um rígido regramento que privilegia a manutenção do capital em detrimento das pessoas dos acionistas, sendo totalmente secundário eventual elemento subjetivo estabelecido entre os sócios. Nesse sentido, Lamy Filho e Pedreira não negam a possibilidade da existência de intuito personae em companhias fechadas, mas observam que eventuais relações pessoais entre os acionistas não derivam do núcleo do modelo societário e sim de questões laterais, que não podem influenciar no regime jurídico aplicável.

Assim sendo, apesar das companhias fechadas familiares apresentarem um elo subjetivo entre seus acionistas, isto não eleva a affectio societatis a posição de elemento central e constitutivo do tipo societário, seja porque a expressão nada significa para o direito societário moderno, seja porque eventual subjetividade entre os sócios é apenas um aspecto secundário, que não descaracteriza o regime de capital das sociedades anônimas.

A Dissolução Parcial no CPC/2015

A edição do CPC/2015 representou um novo capítulo na polêmica temática da dissolução parcial, isto porque foi o primeiro regramento legal a prever expressamente disposições regulamentares acerca do instituto, o que claramente inovou em relação ao procedimento, historicamente construído por interpretações jurisprudenciais.

Neste novo contexto, o artigo 599, §2°, determina que a ação de dissolução parcial poderá ser utilizada no âmbito de “sociedade anônima de capital fechado quando demonstrado, por acionista ou acionistas que representem cinco por cento ou mais do capital social, que não pode preencher o seu fim”. O dispositivo, desta forma, procurou reproduzir a hipótese do artigo 206, inciso II, alínea “b”, da LSA, permitindo-se expressamente a substituição da dissolução total pela parcial quando comprovado a inexequibilidade do fim da companhia.

Salienta-se, no entanto, que a inexequibilidade do fim comum de uma sociedade anônima não se confunde com a mera quebra de eventual affectio societatis existente entre os sócios. Tem-se como finalidade de uma sociedade anônima a capacidade desta em realizar seu objeto social, auferindo consequentemente lucros e os redistribuindo aos acionistas na forma de dividendos. Logo, a impossibilidade de preenchimento do fim da companhia, é a impossibilidade estrutural e permanente de a sociedade realizar seu objeto social, com a consequente não distribuição de lucros e dividendos.

Assim, mesmo que se reconhecesse a affectio societatis como elemento essencial das companhias fechadas familiares, o seu rompimento, por si só, não seria o bastante para decretação da dissolução parcial, pois, por força legal, é necessário que se comprove a impossibilidade preenchimento do fim da sociedade.

O STJ inverte, portanto, as ordens dos fatores ao focar na quebra da affectio societatis como fator essencial da impossibilidade do preenchimento do fim da companhia, relegando a não distribuição de lucros e dividendos ao plano de mera consequência, quando na verdade é este fator que verdadeiramente importa para o mundo jurídico.

Em um cenário em que a economia passa por um momento de recessão, diversas empresas podem se tornar operacionalmente inviáveis, o que obsta a distribuição de dividendos, possibilitando-se, consequentemente, a dissolução da sociedade. Neste contexto, o fator ensejador da dissolução é tão somente a inviabilidade operacional do empreendimento conjugada com a não distribuição de dividendos, de maneira que o cenário de recessão é apenas a causa fática da inviabilidade da empresa, mas não a causa jurídica da dissolução. A mesma lógica se aplica a quebra da affectio societatis, pois o que possibilita juridicamente a dissolução da companhia é a não distribuição de dividendos, sendo o rompimento da affectio apenas o motivo fático que levou a essa não distribuição.

Ao nosso ver, portanto, a aplicação do instituto da dissolução parcial nas sociedades anônimas requer uma análise fática e concreta de cada empresa, verificando-se a possibilidade de a companhia realizar seu objeto social, bem como de produzir e distribuir lucros, o que evidentemente vai muito além dos aspectos subjetivos e obscuros alçados pela enigmática affectio societatis.

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