A limitação da regência supletiva da Lei 6.404/76 em Sociedades Limitada

A Regência das Sociedades Limitadas e a Supletividade
A sociedade limitada, regida pelos artigos 1.052 e seguintes do Código Civil, é uma das estruturas societárias mais populares no Brasil, sendo amplamente adotada por empresas de diversos portes. Esse tipo societário, além de oferecer aos sócios a segurança de uma responsabilidade limitada, vinculada apenas ao valor integralizado de suas quotas na sociedade, proporciona flexibilidade, por meio de normas dispositivas que permitem aos sócios estabelecerem regras personalizadas no contrato social.
Essa flexibilidade confere autonomia para moldar a estrutura da sociedade às suas necessidades específicas, podendo optar, inclusive, pela regência supletiva da Lei das Sociedade por Ações, Lei nº 6.404/76 (“LSA”). Mas afina, o que significa a regência supletiva da LSA nas sociedades limitadas?
O Decreto nº 3.708/1919 previa, em seu artigo 18, a possibilidade de aplicação subsidiária das normas das sociedades anônimas às sociedades limitadas:
“Art. 18. Serão observadas quanto às sociedades por quotas, de responsabilidade limitada, no que não for regulado no estatuto social, e na parte aplicável, as disposições das Lei das Sociedades Anônimas.”
A redação do referido artigo gerou divergências doutrinárias. João Eunápio Borges defendia que a lei das sociedades anônimas era supletiva à lei das sociedades por quotas. Em contraposição, Egberto Lacerda Teixeira sustentava uma perspectiva mais ampla, argumentando que a lei das sociedades anônimas deveria funcionar não apenas para complementar o que foi insuficientemente tratado, mas principalmente para preencher omissões e lacunas legislativas.
Com o advento do Código Civil por meio Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002 (“CC”) a sistemática de regência supletiva foi substancialmente modificada. O artigo 1.053 do CC introduziu uma nova abordagem para as sociedades limitadas:
“Art. 1.053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples.
Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima.”
No Projeto de Lei nº 6.960, de 2002, propunha-se que o artigo 1.053 do CC previsse apenas a aplicação supletiva das normas das sociedades anônimas, deixando de lado as regras da sociedade simples. Entretanto, parte considerável do texto legal sobre as sociedades limitadas contém remissões específicas aos dispositivos sobre sociedades simples. Nesse sentido, a alteração do artigo mencionado visando a aplicação exclusiva das normas das sociedades anônimas implicaria em revisão de praticamente todas as normas sobre sociedades limitadas, a fim de garantir a coerência.
Modesto Carvalhosa apresentou críticas ao dispositivo mencionado. O autor argumenta que a escolha das sociedades simples como regime supletivo primário seria inadequada, considerando que (a) as sociedades simples originalmente representavam um modelo para sociedades de responsabilidade solidária e não comerciais e (b) as sociedades limitadas, na prática, configuram-se como sociedades comerciais por excelência, servindo como modelo para empresas industriais, comerciais e joint ventures. Este também é o entendimento de Edberto Lacerda Teixeira.
Apesar das críticas, as normas aplicáveis às sociedades limitadas obedecem à seguinte hierarquia. Inicialmente, prevalecem as regras previstas no capítulo sobre sociedades limitadas. Em seguida, se existirem normas dispostas nesse capítulo, mas o contrato social também estabelecer regras sobre o tema, o contrato prevalecerá. Se o contrato não tratar do tema, aplica-se a norma prevista no Código Civil.
Na ausência de disposições específicas sobre o tema no capítulo das limitadas, aplicam-se as normas relativas às sociedades simples, salvo se o contrato social prever expressamente a aplicação supletiva das normas das sociedades anônimas. Nesse caso, são aplicáveis as disposições da LSA, desde que compatíveis com a natureza das sociedades limitadas.
Em contraposição a este cenário que exige a previsão expressa da adoção das normas das sociedades anônimas, vale mencionar que o Departamento de Registro Empresarial e Integração (“DREI”), através de seu Manual de Registros para Sociedades Limitadas (Instrução Normativa nº 38/17 do DREI), prevê a possibilidade de presunção da adoção de tais normas no contexto das sociedades limitadas.
“Para fins de registro na Junta Comercial, a regência supletiva:
I – poderá ser prevista de forma expressa; ou
II- presumir-se-á pela adoção de qualquer instituto próprio das sociedades anônimas, desde que compatível com a natureza da sociedade limitada, tais como:
a) Quotas em tesouraria;
b) Quotas preferenciais;
c) Conselho de Administração; e
d) Conselho fiscal.”
De acordo com Paola Pereira Martins, a presunção da regência supletiva da LSA para sociedades limitadas não encontra respaldo na legislação brasileira e contraria princípios fundamentais do direito privado, como a autonomia da vontade e a liberdade de contratar. A autora destaca que a sociedade limitada, por sua natureza contratual, é regida pelas vontades expressas no contrato social , sendo inadmissível presumir cláusulas ou intenções não manifestadas nesse instrumento.
Martins argumenta que a aplicação supletiva da LSA exige previsão contratual explícita, conforme disposto no Código Civil. A lógica do DREI, de presumir essa regência com base na adoção de institutos das sociedades anônimas representa um abuso de competência, pois extrapola os limites legais do órgão, que possui competência apenas para solucionar dúvidas ocorrentes de interpretação das leis, regulamentos e demais normas relacionadas com o registro de empresas mercantis, através da edição de instruções.
Além disso, a autora ressalta que certos institutos mencionados pela instrução, como o conselho fiscal, já estão previstos no Código Civil como elementos facultativos das sociedades limitadas, o que evidencia a falta de necessidade de recorrer à legislação das sociedades anônimas nesses casos.
Limitações da Regência Supletiva
Entretanto, apesar de admitir a regência supletiva pela LSA nas sociedades limitadas, tal não significa um transplante irrestrito destas regras, em sobreposição ao que já esteja positivado no próprio Código Civil.
Primeiro, porque o próprio artigo 1.053, caput, do CC, coloca que, nas omissões do Capítulo das Sociedades Limitadas, há a incidência das regras das sociedades simples. Então, em segundo momento, há a previsão da possibilidade de eleger, no contrato social, a supletividade da LSA. No caso, a interpretação de hierarquia entre as regras é essencial.
Fábio Ulhoa Coelho, em sua visão, diz que existiram dois subtipos de sociedades limitadas: as regidas, supletivamente, pelas regras das sociedades simples e as regidas, supletivamente, pelas regras das sociedades por ações. Sobre o tema, o autor coloca:
“Se o contrato social for omisso quanto ao regime de regência supletiva ou eleger o das sociedades simples, naquelas matérias em que o Capítulo do CC sobre sociedade limitada for omisso, aplicam-se as regras do Capítulo do CC sobre sociedades simples. Caso o contrato social eleja como regime de regência supletiva o da sociedade anônima, naquelas matérias, a sociedade limitada sujeitar-se-á às normas da LSA.”
Isto é, os sócios têm a seu dispor a opção de renegar as normas das sociedades com em virtude da LSA. Entretanto, não é essa a visão adequada ao ordenamento, nem à interpretação estabelecida pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”).
No REsp n° 1.839.078/SP, o relator Min. Paulo de Tarso Sanseverino deixa claro que a supletividade da LSA não afasta as previsões do Código Civil para as sociedades simples. No caso em tela, a recorrida alegava a impossibilidade de retirada voluntária imotivada de sócio, mediante aviso prévio, uma vez que não há previsão expressa para tal na LSA e a sociedade em que questão a elegeu supletivamente. A tese prosperou em segunda instância, mas o STJ entendeu que, mesmo com a regência supletiva, há a prevalência do art. 1.029 do Código Civil, dispositivo atinente às sociedades simples, motivo pelo qual o Recurso Especial foi provido e foi reconhecida a possibilidade de retirada voluntária imotivada.
Isso se deu por dois fatores: primeiro, por naturezas de garantia constitucional, qual seja a liberdade de associação; e, segundo, pela natureza da sociedade limitada (contratual) em posição à natureza da sociedade anônima (de capital).
Assim, tem-se que a regência supletiva da LSA nos contratos sociais das sociedades limitadas não é absoluta e está sujeita, inclusive, nos casos em que exista oposição entre os diplomas ou mera lacuna, às regras das sociedades simples, tal como estipula o caput do art. 1.053, CC. Dizer isso não significa, também, que a regência supletiva da LSA é fragilizada, mas que somente vale quando for compatível com a natureza da sociedade limitada, tal como, mas sem se limitar a, nas quotas em tesouraria, na estipulação de um conselho fiscal e/ou de administração.
Conclusão
Por fim, a aplicação supletiva das normas da LSA em sociedades limitadas continua sendo um tema complexo e cheio de nuances jurídicas. A prática exige uma cuidadosa análise dos contratos sociais para garantir que as disposições escolhidas pelos sócios não conflitem com o ordenamento jurídico vigente, especialmente em relação às normas das sociedades simples, previstas no Código Civil. Tal análise torna-se ainda mais crucial diante das interpretações judiciais e do entendimento do STJ, que reforçam a prevalência das normas internas desde que compatíveis com a natureza contratual das sociedades limitadas.
Portanto, ao optar por incluir elementos típicos de sociedades anônimas em sociedades limitadas, é essencial que os sócios e seus assessores jurídicos o façam de maneira explícita nos contratos sociais, evitando assim ambiguidades e possíveis conflitos legais. A clareza nesses documentos permite que as intenções iniciais dos sócios prevaleçam durante a existência da sociedade, proporcionando segurança jurídica e facilitando a gestão e a governança corporativa.
Em suma, a regência supletiva pelas normas da LSA deve ser encarada mais como um complemento às regras especialmente desenhadas para sociedades limitadas do que como uma substituição. Assim, a abordagem correta respeita tanto a autonomia contratual dos sócios quanto a coerência do ordenamento jurídico, promovendo um equilíbrio entre flexibilidade e segurança jurídica na estruturação e operação das sociedades limitadas no Brasil.
Referências
LUCEK, Isadora. Limites à Regência do Direito Supletivo nas Sociedade Limitadas. 17 Mai 2021. Disponível em: . Acesso em: 20 Dez 2024.
PEREIRA MARTINS, Paola. Presunção da Adoção da Regência Supletiva da Lei 6.404/76 em Sociedade Limitadas. 23 Jan 2018. Disponível em: . Acesso em: 20 Dez 2024.
SÃO PAULO. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão REsp nº 1839078 / SP (2017/0251800-6). Recorrente: Alexandre Safatle Rezek. Recorrido: Premier Educacional Ltda. Relator: Min. Paulo de Tarso Sanseverino. 05 Mar 2021. Disponível em: . Acesso em: 20 Dez 2024.
MINISTÉRIO DO EMPREENDEDORISMO, DA MICROEMPRESA E DA EMPRESA DE PEQUENO PORTE. Manual de Registro de Sociedade Limitada. Conforme Alterado pela Instrução Normativa DREI nº 01, de 24 de janeiro de 2024. Disponível em: . Acesso em: 20 Dez 2024.