O Conflito de Interesses na Aquisição de Direitos Creditórios Originados por Partes Relacionadas ao FIDC Adquirente  

Matheus Melo Eschipio

Os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC) são instrumentos significativos no mercado financeiro brasileiro, atuando como uma forma de financiamento para empresas, tendo em vista o seu objetivo principal de adquirir recebíveis ou direitos creditórios1. O que ocorre é que em algumas situações, esse processo de aquisição pode se tornar muito complexo, e, assim, passam a surgir situações em que os prestadores de serviços se colocam em posição de conflito de interesses, potencialmente vindo a prejudicar os interesses dos cotistas do fundo2. Por isso, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) sempre atuou na prevenção de conflitos de interesses por meio de restrições, gerando debates no mercado sobre os limites de sua atuação e a razoabilidade de sua abordagem protetiva, especialmente considerando a autonomia de investidores com maior grau de qualificação.

Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC)

Os fundos de investimento são constituídos por meio de recursos agregados de investidores variados, destinados à aplicação em uma carteira diversificada de títulos e valores mobiliários, possibilitando, assim, que um único investidor possa adquirir diversos produtos financeiros simultaneamente em uma única aplicação financeira3. Nos FIDCs, o valor aplicado pelos cotistas, por meio da aquisição de cotas do fundo, é utilizado para aquisição de recebíveis ou direitos creditórios de maneira que passem a compor mais de 50% do seu patrimônio líquido para aplicações4. E o retorno financeiro ao investidor ocorre por meio da valorização da carteira composta por esses ativos provenientes de direitos creditórios, resultando na valorização da cota adquirida5.

Dentre as principais vantagens de se investir em um FIDC, estão a diversidade de ativos financeiros, que visam a maximização do retorno e diminuição dos riscos, e a participação de diversas instituições no processo de controle, o que proporciona maior fiscalização e acompanhamento das suas operações, gerando assim, maior segurança ao investidor6.

Ressalta-se que, conforme mencionado anteriormente, os FIDCs emergiram no mercado brasileiro como uma ferramenta inovadora para proporcionar liquidez às empresas, isto porque esse tipo de fundo tem por objetivo a aquisição de recebíveis ou direitos creditórios, o que acaba que por proporcionar um adiantamento desses valores às empresas, assim, gerando caixa em menos tempo, e com condições melhores que as oferecidas por instituições financeiras.

Aquisição de Direitos Creditórios originados ou cedidos por Prestadores de Serviços do FIDC

Os FIDCs, assim como qualquer fundo, são compostos por vários participantes, como cotistas, gestor, administrador, custodiante, entidade registradora, cada um com seu papel bem definido pela regulamentação em vigor. Ocorre que em algumas situações, é possível que os prestadores de serviços (Gestor, Administradora, Custodiante, entidade registradora, entre outros) tentem ceder seus direitos creditórios ao fundo em que atuam, ou ainda tentem adquirir recebíveis de partes relacionadas.

A justificativa seria a realização de uma alocação mais adequada da oportunidade de negócio, visto que esses prestadores conhecem o ativo que está sendo cedido/adquirido, e, assim, até mesmo poderiam avaliar de melhor forma a adequação do ativo ao perfil do FIDC, diminuindo riscos e reduzindo custos7.

Entretanto, tal prática pode representar um grande conflito de interesses, haja vista que quem presta os serviços para o fundo poderia tomar decisões para obter incentivos em benefício próprio, não alinhado aos interesses dos cotistas.

Regulamentação e Interpretações da CVM

A CVM desde a Instrução 356 (revogada pela Resolução CVM 175), veda ao administrador, gestor, custodiante e consultor especializado ou a quaisquer partes relacionadas a eles, a realização de cessão ou a originação, direta ou indiretamente, de direitos creditórios aos FIDCs em que atuem8.

Todavia, a própria CVM, conforme manifestação no Relatório de Análise de Audiência Pública SDM nº 08/20, entendeu que a indústria de FIDC vem evoluindo ao longo dos anos, e embora tenha vivenciado muitos problemas relacionados a operações de FIDC conflitadas, a autarquia de fato passou a entender que a regulamentação por meio de restrições é um recurso extremo, e por isso, estaria disposta a rever a restrição relacionada ao conflito de interesses, passando a permitir operações como a vedada pela Instrução CVM 356, desde que destinadas a investidores profissionais9.

E passado alguns anos, assim foi feito com a chegada da Resolução CVM 175, conforme alterada, que passa, então, a prever no Anexo Normativo II, em seu artigo 42, §1º, incisos I e II, a possibilidade de afastar a referida vedação da antiga Instrução 356, desde que o gestor, a entidade registradora e o custodiante não sejam partes relacionadas entre si, e a mesma entidade registradora e o custodiante não sejam partes relacionadas ao originador ou cedente de direito creditório10.

Destaca-se que conforme art. 13, inciso IV, alínea “b”, do Anexo Normativo II à Resolução CVM 175, tal vedação só pode ser mitigada nas hipóteses acima, caso as cotas da classe do FIDC sejam destinadas a investidores qualificados ou profissionais11.

Conclusão

A regulamentação dos FIDCs conforme a Resolução CVM 175 é vital para assegurar a equidade e eficiência do mercado, ao mesmo passo que também garante a independência aos investidores. Muito embora os FIDCs viabilizem o adiantamento de caixa para empresas através da aquisição de direitos creditórios, oferecendo condições mais vantajosas do que aquelas propostas por instituições financeiras tradicionais, em algumas situações a chance de conflito de interesses pode distorcer os interesses dos cotistas. Dessa forma, a atuação da CVM busca mitigar esses riscos, permitindo exceções apenas quando existir clara independência entre as partes envolvidas, e desde que esse produto seja destinado a investidores qualificados e profissionais, tendo em vista seu maior discernimento e entendimento acerca dos riscos envolvidos em tais exceções. O Ofício-Circular nº 6/2024 da CVM confirma essa interpretação, garantindo que o mercado funcione de maneira justa e transparente, evitando que conflitos comprometam a integridade do sistema financeiro.

Equipe relacionada

Matheus Melo Eschipio

Yasmin Peixoto Braga

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