Perfil de Risco do Investidor e Suitability: As conclusões da CVM acerca do impacto regulatório da Resolução CVM 30 

José Matheus Muniz e Yasmin Peixoto Braga
José Matheus Muniz e Yasmin Peixoto Braga

Introdução

O crescente acesso de investidores de varejo ao mercado de capitais, aliado à complexidade dos produtos financeiros ofertados, impõe desafios relevantes para a proteção do investidor. Nesse contexto, o mecanismo de suitability, que visa assegurar a adequação dos produtos, serviços e operações ao perfil do investidor, é proposto pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) como peça fundamental para mitigar riscos decorrentes da assimetria informacional entre intermediários e investidores.

Diante desse panorama, a CVM divulgou, no final do mês de janeiro, um estudo de Avaliação de Resultado Regulatório (ARR) que analisa, de forma qualitativa e quantitativa, a eficácia da Resolução CVM n° 30, de 11 de maio de 2021, no processo de Análise do Perfil do Investidor (API).

Evolução Histórica e Normativa do Mecanismo de Suitability

Historicamente, o processo de verificação da adequação dos investimentos aos objetivos e a capacidade financeira dos investidores ganhou especial atenção após a crise financeira de 2008, que revelou inúmeros casos de recomendação de investimentos inadequadas. A percepção de que era necessário proteger os investidores das recomendações que recebiam levou à elaboração de normas específicas pelos reguladores de mercado de capitais de todo o mundo. No Brasil, a primeira normativa a dispor sobre o tema foi a Instrução CVM nº 539, de 2013, recentemente atualizada em 2021 pela Resolução CVM 30 – com o fim de ampliar e aperfeiçoar o arcabouço normativo aplicável às recomendações de investimentos1.

A regulação visou não somente a padronização dos processos, mas também a criação de controles internos para os reguladores (CVM) e autorreguladores (como a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais – ANBIMA e a BSM Supervisão e Mercados) que garantam a efetividade da proteção ao investidor, reduzindo a possibilidade de recomendações inadequadas.

Isso, porque, os investidores apresentam diferenças marcantes tanto em seus objetivos quanto em seu perfil de risco. Um determinado valor pode representar uma parte significativa do patrimônio de um investidor, enquanto para outro pode ter um impacto menor. Há aqueles, mais arrojados, que aceitam assumir riscos maiores com a expectativa de obter retornos igualmente maiores, ao passo que outros optam por evitar riscos, priorizando a preservação do capital. Esse processo de adequação do investimento ao perfil de risco de cada investidor é conhecido pelo termo em inglês suitability2.

Diante disso, a Resolução CVM 30 estabelece que intermediários e consultores de valores mobiliários devem verificar a adequação dos produtos e serviços ao perfil do cliente, considerando, entre outros, os objetivos de investimento, a situação financeira, o conhecimento sobre os riscos e as preferências do investidor3. Assim, a verificação da adequação do investimento se fundamenta na necessidade de reduzir o conflito de interesses inerente à relação comercial e a assimetria informacional entre intermediários e investidores4.

Os perfis geralmente são definidos entre conservador, moderado e arrojado, de acordo com a aceitação ao risco e tempo esperado para retorno dos investimentos. Além disso, os investidores também são classificados de acordo com a renda e o volume disponível para investimento como “varejo ou público geral”, “qualificado” e “profissional”. Grosso modo, o investidor de varejo é o investidor individual, que não investe grandes volumes; o qualificado é o investidor que tem mais de R$ 1 milhão investido; já o profissional dispõe de mais de R$ 10 milhões alocados em investimentos5.

Além do mais, a análise realizada pela CVM sobre o impacto de sua regulação ocorre em momento oportuno, uma vez que o número de novos investidores (CPFs únicos) registrados na bolsa aumentou expressivamente nos últimos anos6 e é fundamental garantir a adequação e cumprimento das expectativas desse novo público, uma vez que isso influencia a sua permanência no mercado de capitais e interesse por novos investimentos.

Análise do Estudo da CVM sobre o Processo de Suitability

O estudo de ARR recentemente publicado pela CVM apresentou uma análise da eficácia da Resolução CVM 30 e utilizou das bases de dados de autorreguladores (ANBIMA e BSM), de informações internas da CVM e de uma pesquisa realizada com 2.815 (dois mil oitocentos e cinco) investidores.

A conclusão do estudo foi a de que a Resolução CVM 30, de maneira geral, vem contribuindo para a redução dos apontamentos em auditorias sobre o tema e para a diminuição da porcentagem de perfis de risco não mapeados – o que indica eficácia da norma para respaldar a supervisão e dissuasão dos reguladores e autorreguladores. Além disso, a CVM verificou que, mesmo com o ingresso massivo de novos investidores no mercado nos últimos anos, o número de processos envolvendo o tema não acompanhou proporcionalmente essa injeção de novos investidores o que, mais uma vez, sinaliza a efetividade na aferição dos perfis de risco. Contudo, os resultados também evidenciaram que essa eficácia se encontra abaixo do potencial máximo da norma, sobretudo em razão do cumprimento meramente formal da obrigação imposta pelo regulador, verificação de falhas operacionais e da influência indutora de assessores na classificação do perfil do investidor.

A CVM apurou que os questionários de suitability oferecidos pelos participantes do mercado adequam-se aos requisitos formais da Resolução CVM 30, porém encontrou poucas evidências de que estes questionários são usados para a segmentação comercial dos clientes. Ou seja, seu preenchimento normalmente se dá por questão meramente regulatória e as informações fornecidas pelos investidores não necessariamente são utilizadas pelos intermediários para definir os seus objetivos de investimento.

Um dado que reforça essa percepção foi a verificação de que alguns assessores influenciam o preenchimento dos questionários de suitability para adequar o perfil de risco ao investimento que querem recomendar aos seus clientes – invertendo, assim, a lógica da API. Vale destacar que esse cenário não foi majoritário, mas serve como reforço para a hipótese de que os questionários são vistos como uma burocracia regulatória e não como uma parte fundamental da composição da carteira de investimento dos clientes.

Essa visão meramente “burocrática” sobre os questionários também é compartilhada pelos investidores: dados da pesquisa temática apontam uma percepção majoritariamente negativa dos investidores quanto à utilidade da API realizada pelos intermediários, classificada por 52% dos entrevistados como “pouco ou nada útil”. Essa insatisfação sugere que, apesar dos avanços, o processo ainda carece de mecanismos que efetivamente orientem e eduquem os investidores.

Já dentre as falhas operacionais, estão os casos em que a API é realizada, mas ela é feita de forma inadequada ou, quando é adequada, são oferecidos produtos não compatíveis com o perfil do investidor.

No estudo publicado, a CVM também realizou análise comparativa entre as práticas de suitability adotadas nos Estados Unidos, na União Europeia e no Brasil. Foi verificada que a abordagem entre os reguladores dessas regiões é convergente – principiológica e pautada em uma abordagem baseada em risco. Contudo, enquanto o arcabouço brasileiro tende a ser mais prescritivo, as jurisdições estrangeiras conferem maior discricionariedade aos intermediários na aplicação de métodos de avaliação (principalmente nos Estados Unidos).

Dessa forma, o estudo de ARR evidencia que, embora a Resolução CVM 30 tenha promovido avanços significativos na redução dos apontamentos de auditoria e na melhoria do mapeamento dos perfis de risco, sua eficácia plena ainda não foi alcançada. A percepção negativa dos investidores e a verificação de que o mercado busca estritamente o cumprimento formal das regras reforçam a necessidade de ajustes que tornem o processo de suitability mais dinâmico e educativo.

Dentre as propostas de melhoria, o estudo sugere aproveitar o compartilhamento de informações no âmbito do open finance para o compartilhamento das APIs; a utilização de utilities para centralizar o cadastro de APIs; a vedação expressa, na Resolução CVM 30, da interferência comercial na análise do perfil de risco; dentre outras, detalhadas no relatório do estudo. Tais recomendações são focadas em aumentar a eficácia da proteção ao investidor enquanto procuram não comprometer a dinâmica do mercado.

Conclusão

É certo que a Resolução CVM 30 impõe obrigações claras aos participantes do mercado. Ao determinar que a recomendação de produtos só pode ocorrer após a verificação da adequação ao perfil do cliente, o normativo estabelece uma responsabilidade que pode, inclusive, ser interpretada à luz dos princípios gerais de proteção ao consumidor e da boa-fé objetiva nas relações contratuais.

Contudo, o estudo da CVM evidencia que, na prática, a operacionalização desses dispositivos nem sempre se traduz na efetiva proteção dos investidores. A influência dos incentivos comerciais e as falhas na aplicação dos controles internos pelas instituições financeiras podem minar os objetivos regulatórios, configurando um cenário onde o texto normativo e a realidade de mercado não se encontram de forma harmônica.

Essas deficiências encontradas pela autarquia podem ser evidências de um processo que foi estabelecido artificialmente pelo regulador, sem que tenha surgido naturalmente nas práticas comerciais. Como exposto, os mecanismos de suitability – no mundo todo – foram implementados por órgãos reguladores após as grandes perdas que alguns investimentos causaram após a crise de 2008. Maior evidência está no fato de que as APIs são realizadas para mero cumprimento de formalidade exigida pela regulação, sem incorporar-se aos processos de composição das carteiras de investimento.

Certamente, esse fenômeno não deve servir de justificativa para afastar a necessidade de análise do perfil do investidor, mas nos ajuda a compreender que talvez a efetividade que a CVM procura só será possível quando os investidores e os participantes do mercado vislumbrem a API como etapa obrigatória na seleção de investimentos – algo que certamente é desafiador, pois exigiria alterações no cotidiano profissional e, quiçá, até na forma como a venda de produtos de investimento é realizada pelos intermediários.

Ainda assim, é certo que a norma possui função regulatória relevante e a realização do estudo abre o espaço para melhorias palpáveis, tanto na operacionalização do processo de suitability quanto na percepção dos investidores sobre a efetividade dos mecanismos de proteção. Nessa linha, a integração de informações via open finance ou a criação de uma entidade centralizadora de APIs, a atualização periódica dos cadastros dos clientes e o aprimoramento dos instrumentos de comunicação se mostram medidas essenciais para que o suitability alcance seu pleno potencial.

O debate em torno do tema no Brasil deve continuar a ser fomentado tanto pelo aprimoramento normativo quanto pelo fortalecimento dos mecanismos de supervisão e educação dos investidores, a fim de que o equilíbrio entre inovação e proteção seja sempre almejado. Aguardamos com curiosidade as medidas que serão tomadas pela CVM após a divulgação do estudo.

Referências Bibliográficas

B3. Entenda o que é suitability e a importância do perfil de risco solicitado pelas corretoras: BSM apresenta dicas para preenchimento correto dessas informações. Notícias B3: Suitability. São Paulo, 2022. Disponível em: https://www.b3.com.br/pt_br/noticias/suitability.htm. Acesso em: 04.02.2025.

CVM. Resolução CVM nº 30, de 11 de maio de 2021. Comissão de Valores Mobiliários, Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/resolucoes/resol030.html. Acesso em: 04/02/2025.

CVM. Processo de Análise do Perfil do Investidor (suitability): uma análise qualitativa e quantitativa da aplicação da Resolução CVM 30. Avaliação de Resultado Regulatório (ARR). Assessoria de Análise Econômica, Gestão de Riscos e Integridade (ASA). Rio de Janeiro, janeiro de 2025. Disponível em: https://www.gov.br/cvm/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos/arr-suitability.pdf. Acesso em: 04.02.2025.

CVM. Entenda o Suitability. A ideia de que os produtos de investimentos devem estar adequados ao perfil de risco e aos objetivos de cada investidor é conhecida no mercado pelo termo em inglês Suitability. No texto abaixo são apresentadas as principais características do processo de suitability e o papel das instituições e dos investidores. Portal do Investidor. Rio de Janeiro, 2022. Disponível em: https://www.gov.br/investidor/pt-br/investir/antes-de-investir/respeite-o-seu-perfil-de-investidor/entenda-o-suitability. Acesso em: 04.02.2025.

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José Matheus Muniz

Yasmin Peixoto Braga

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