Prescrição Intercorrente em processos administrativos na CVM

Introdução
A prescrição é um instituto jurídico que extingue a pretensão de reparação por violação de direito em razão da inércia da parte interessada dentro de um prazo legalmente estabelecido. Seu propósito é assegurar a segurança jurídica e a estabilidade das relações sociais, impedindo que litígios se prolonguem indefinidamente. Extinta a pretensão, não há ação.
A prescrição intercorrente, por sua vez, ocorre quando, após o início do exercício da pretensão, há paralisação injustificada do processo por um determinado lapso temporal, resultando na extinção do direito de ação.
No âmbito do mercado de valores mobiliários, compete à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), mediante processo administrativo, apurar e aplicar eventuais sanções em relação a atos ilegais e práticas não equitativas (art. 9º, inciso V e VI, da Lei n° 6.385/76). Assim sendo, uma vez que eventual infração no mercado de capitais seja praticada, a CVM terá a pretensão jurídica de apurá-la, bem como de aplicar as respectivas sanções, sendo certo, por seu turno, que tal pretensão está sujeita a prazos prescricionais previstos na Lei n° 9.873/99.
Conforme o art. 1° da Lei n° 9.873/99, a pretensão da ação punitiva da CVM, enquanto parte da Administração Pública Federal, está sujeita a um prazo prescricional de 5 anos, sendo que uma vez iniciado o procedimento administrativo, este não pode ficar paralisado por mais de 3 anos, pendente de julgamento ou despacho, hipótese em que restaria configurada a prescrição intercorrente (art. 1°, §1°).
Neste contexto, o presente texto tem como objetivo discutir dois principais temas que circundam a aplicação da prescrição intercorrente nos processos administrativos da CVM: (i) o decurso do prazo prescricional na fase de inquérito administrativo; e (ii) os atos que interrompem a prescrição.
Prescrição Intercorrente em Inquérito Administrativo
Desde o julgamento do PAS CVM n° 22/941, prevalecia na jurisprudência da autarquia o entendimento de que a prescrição intercorrente não seria aplicável na hipótese de paralisação do inquérito administrativo por mais de 3 anos, uma vez que o “instituto somente tem incidência após formulada a acusação e iniciado o processo”. Isto é, eventual contagem do prazo prescricional somente teria início após a formação da relação jurídica processual, que seria no momento de acusação formal do administrado.
Conforme ensina Eli Loria, no entanto, o art. 1°, §1°, da Lei nº 9.873/99, ao estipular o prazo trienal, emprega o vocábulo “procedimento administrativo”, de forma que engloba todos os atos administrativos praticados para apurar e julgar um determinado fato. Nesse sentido, o prazo trienal incluiria não somente o processo administrativo sancionador em sentido estrito, mas também as fases pré-processuais de inquérito2:
Sabe-se que o legislador não utiliza palavras inúteis. Se escolheu a expressão “procedimento administrativo”, e não “processo administrativo sancionador”, é porque não pretendeu limitar a incidência da prescrição intercorrente ao procedimento após a intimação do acusado para apresentação da defesa. Faz-se necessário ressaltar que toda decisão tomada pela CVM é fruto de um processo administrativo, e que nem todo processo administrativo da autarquia é sancionador. Estar “pendente de julgamento ou despacho” não é condição exclusiva dos processos administrativos sancionadores, tendo em vista que qualquer procedimento administrativo é movimentado, geralmente, por meio de despacho. Isso inclui, certamente, os procedimentos de investigação instaurados pelas Superintendências para apurar indícios de infração, que poderão, no futuro dar origem a processos sancionadores.
Em 2020, sob a mesma linha de pensamento de Eli Loria, o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN), quando do julgamento do processo n° 10372.000380/2016-83, superou o antigo entendimento da CVM, fixando a tese de “possibilidade de fluência da prescrição intercorrente (Lei nº 9.873/1999, art. 1º, §1º) antes da instauração formal do processo administrativo sancionador por meio da citação válida”3.
No referido julgamento, entretanto, determinou-se que o novo entendimento se aplicaria apenas aos processos que completassem o prazo trienal de prescrição após 1 ano de publicação do acórdão, sob justificativa de que atos administrativos plenamente constituídos não poderiam ter sua validade analisada com base em mudança posterior de orientação geral, à luz do art. 24, da LINDB. Na prática, portanto, a prescrição intercorrente somente seria aplicável nos procedimentos administrativos que permanecessem paralisados após a publicação do acórdão.
Por nosso turno, entendemos que a modulação de efeitos proposta pela CRSFN não possui amparo jurídico, uma vez que a impossibilidade de retroação de nova interpretação administrativa não se aplica quando esta for benéfica ao administrado, sob pena de rompimento da isonomia entre os próprios administrados, de modo que apenas alguns serão favorecidos pela nova interpretação4.
Entende-se, assim, como acertado o posicionamento do CRSFN quanto à aplicabilidade da prescrição intercorrente na fase de inquérito administrativo, porém inadequada a modulação de efeitos proposta, justamente porque a administração pública reconheceu o seu erro em relação à interpretação anterior, de modo que não pode sujeitar um grupo de administrados a esse entendimento errôneo e outro ao novo posicionamento5.
Interrupção do Prazo Prescricional
Outro ponto de atenção na prescrição intercorrente dos processos administrativos da CVM se refere à interrupção da contagem do prazo prescricional. Conforme o art. 2° da Lei n° 9.873/99, o prazo prescricional da ação punitiva é interrompido, dentre outras hipóteses, por “qualquer ato inequívoco, que importe apuração do fato”. Mas afinal, o que isto significa?
De acordo com a jurisprudência administrativa da CVM6 e do CRSFN7, qualquer ato processual que impulsione o procedimento ao seu desfecho é capaz de interromper a fluência do prazo trienal da prescrição intercorrente, o que inclui despachos de mero expediente e redistribuições de relatoria.
Entendemos, no entanto, que não é qualquer ato que é capaz de interromper o decurso do prazo prescricional, mas somente aqueles que tenham como função apurar o fato sob julgamento/investigação, isto é, atos de instrução do procedimento administrativo8.
A interrupção do prazo por qualquer ato, inclusive, contraria a própria razão de ser do instituto da prescrição, vez que tal interpretação da norma abre espaço para comportamentos meramente protelatórios por parte da administração pública, prolongando os processos administrativos por prazos indefinidos. A adoção de um critério amplo, que considera qualquer ato como suficiente para a interrupção da prescrição, pode comprometer o equilíbrio entre a necessidade de fiscalização e a proteção contra a duração desarrazoada dos processos administrativos. Dessa forma, é necessário que, conforme já definido em lei, apenas atos de instrução efetivamente voltados à apuração do fato sejam considerados hábeis a interromper a prescrição, garantindo um procedimento mais célere e justo.
Conclusão
A forma como a CVM e o CRSFN vêm aplicando a prescrição intercorrente em seus processos administrativos levanta questionamentos sobre uma possível jurisprudência defensiva, na medida em que determinados entendimentos parecem priorizar a preservação das prerrogativas sancionadoras da administração em detrimento da segurança jurídica dos administrados.
Diante desse cenário, é essencial que a CVM e o CRSFN adotem um posicionamento mais equilibrado, pautado na previsibilidade, na duração razoável do processo e na isonomia, evitando interpretações que favoreçam a perpetuação dos processos administrativos. A prescrição intercorrente deve ser aplicada de forma coerente com seu objetivo fundamental: impedir a inércia estatal e garantir que os processos administrativos sejam conduzidos de maneira eficiente, sem se tornarem instrumentos de insegurança jurídica.
Referências
1 COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS; Processo Administrativo Sancionador CVM n° 22/94, rel. Dir. Luiz Antonio de Sampaio Campos, j. em 15 de abr. de 2004.
2 LORIA, Eli. Prescrição da Pretensão Punitiva em Processos Administrativos Sancionadores das CVM. In Pareceres em Direito Societário e Mercados de Capital. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 429-430.
3 CONSELHO DE RECURSOS DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL; Processo 10372.000380/2016-83, Acórdão 126/2020, rel. Thiago Paiva Chaves, p. em 8 de set. de 2020. Disponível em: . Acesso em: 15 de fev. de 2025.
4 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo Administrativo Federal: comentários à Lei 9.784 de 29/1/1999. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 63-64.
5 No mesmo sentido, cita-se a sentença proferida em face do Processo n° 1057279-43.2020.4.01.3400, na 2ª Vara Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal, pelo Juiz Anderson Santos da Silva, em 22 de set. de 2023. Disponível em: . Acesso em 15 de fev. de 2025.
6 COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS; Processo Administrativo Sancionador CVM n° 19957.004478/2018-75, rel. Dir. Flávia Perlingeiro, j. em 20 e 21 de jun. 2023.
7 Súmula 5 do CRSFN: “A distribuição e a necessária redistribuição de processos sancionadores para relatoria por integrantes de órgãos colegiados configuram movimentação processual essencial para impulsionar o processo rumo ao seu julgamento e descaracterizam o pressuposto de paralisação da prescrição intercorrente.” Disponível em: . Acesso em: 15 de fev. de 2025.
8 TRF1; Apelação Cível n° 0007773-23.2017.4.01.3400, Quinta Turma, rel. Des. Daniele Maranhão Costa, j. em 17 de mar. de 2021.