As distribuições de lucros no Brasil – Comentários ao REsp. nº 2.053.655-SP 

Gabriel José Bernardi Costa
Gabriel José Bernardi Costa

Introdução

No último dia 11 de fevereiro de 2025, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça julgou o Recurso Especial nº 2.053.655-SP, relatado pelo Ministro Raul Araújo, cujo objeto referia-se à legalidade da distribuição dos resultados sociais a partir de critérios desvinculados da participação dos sócios no capital social.

No caso em questão, os sócios de uma sociedade limitada, que exercia a atividade de consultoria no mercado bancário, haviam deliberado por maioria que os lucros deveriam ser partilhados proporcionalmente aos dias trabalhados por cada sócio na empresa, e não conforme a sua participação no capital. Na ocasião, houve apenas o voto dissidente de uma das sócias, que, inconformada com a decisão tomada – haja vista não ter a disponibilidade de dedicar-se em tempo integral à sociedade – decidiu ingressar com a ação judicial, a fim de que fosse declarada a nulidade da decisão que modificara a forma de repartição dos resultados.

Na sentença, o juízo de primeiro grau reconheceu que os novos critérios de distribuição dos resultados implicariam a exclusão da autora na participação na empresa, uma vez que ela não teria mais uma participação ativa no cotidiano dos negócios empresariais. Mas ressalvou, contudo, que a intenção da autora em não mais querer prestar serviços pessoalmente à atividade empresarial não poderia ser interpretada como uma renúncia às suas quotas sociais; nem poderia ser empregada como razão para a dissolução extrajudicial da sociedade, pois o contrato social não previa essa hipótese.


A posição do Tribunal de Justiça de São Paulo

Em sede de Apelação, o Tribunal de Justiça de São Paulo acolheu o recurso da sociedade e reformou a sentença de primeiro grau. No acórdão relatado pelo Des. Francisco Eduardo Loureiro, ficou reconhecido que – além de não haver previsão expressa no contrato social e no regimento interno da sociedade que privasse qualquer um dos sócios dos lucros sociais – os novos critérios para repartição dos resultados não implicavam uma violação à lei.

O Tribunal de Justiça de São Paulo fundamentou que o art. 1.007 do CC/02 conteria uma norma dispositiva, já que imporia a participação nos resultados proporcionalmente às respectivas quotas “salvo estipulação em contrário”. Razão pela qual admitiu que a divisão desigual dos lucros e perdas recairia dentro da autonomia privadas das partes, que seriam a liberdade de fixar os parâmetros que desejarem na repartição dos resultados, desde que observado o limite imposto pelo art. 1.008 do CC/02.

Interessantemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo ponderou que não haveria nenhuma violação à norma cogente do art. 1.008 do CC/02, pois “no caso concreto, a situação jurídica criada pelo regimento interno não é a de exclusão de qualquer sócio da participação nos lucros, mas sim a de que tal participação decorrerá do trabalho desenvolvido por cada um dos sócios”. E complementa dizendo que “tal cláusula não somente é válida, mas se ajusta à própria natureza da sociedade, de diminuto capital social e cuja atividade envolve prestação de serviços. Natural e adequado que os rendimentos dos sócios sejam proporcionais ao número de horas trabalhadas”.

A posição do Superior Tribunal de Justiça

Após o proferimento do acórdão pelo Tribunal de Justiça, a demandante recorreu ao Superior Tribunal de Justiça, o qual negou provimento ao recurso especial, para reconhecer a legalidade da disposição societária que permitira a distribuição dos lucros proporcionalmente aos dias trabalhados na empresa.

A decisão foi tomada por unanimidade dos presentes da 4ª Turma do STJ, e o acórdão foi relatado pelo Min. Raul Araújo, cujo voto ecoou grande parte da fundamentação previamente fixada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, reiterando a autonomia contratual das partes em fixar critérios atípicos de repartição dos resultados e rejeitando a violação ao art. 1.008 do CC/02. Merece destaque a ponderação do ministro relator quando registra que1:

“Na espécie, a vontade expressa pela maioria da assembleia dos sócios deliberou e decidiu um novo critério de cálculo de distribuição de dividendos, pautado não na participação social, mas sim aos dias trabalhados por cada sócio, ou seja, a participação nos lucros passou a ser correspondente aos dias de efetivo labor, não havendo falar em exclusão absoluta de sócio ao recebimento dos lucros e participação nas perdas e, por conseguinte, em violação ao art. 1.008 do Código Civil”.

A repartição dos resultados e crítica ao REsp. nº 2.053.655-SP

Tanto o julgamento da apelação pelo TJSP, quanto o julgamento do Recurso Especial pelo STJ reconheceram que o art. 1.007 do CC/02 poderia ser interpretado para, dali, extrair uma norma dispositiva que fixaria a distribuição dos lucros e das perdas conforme a participação no capital social.

Dessa forma, não há uma vedação prévia para que o poder negocial atribuídos às pessoas capazes possa instituir uma estrutura normativa diferente, fixando a repartição dos resultados conforme um critério diferente. O que, em tese, sinalizaria uma permissão à regra validada pelo STJ no Recurso Especial nº 2.053.655-SP, quanto a uma participação calculada proporcionalmente aos dias de trabalho dedicados à empresa.

No entanto, ao julgar o Recurso Especial nº 2.053.655-SP, o judiciário brasileiro parece não ter se atentado às implicações de se admitir uma cláusula como aquela que estava em discussão para uma sociedade constituída sob a forma de sociedade limitada.

Aceitar que a distribuição dos lucros estivesse exclusivamente atrelada aos dias efetivamente trabalhados na empresa significaria reconhecer que o sócio, independentemente de sua participação no capital social, poderia não receber nenhum lucro, caso não comparecesse nem dedicasse trabalho à execução do objeto social. Ainda que esse comportamento pudesse ser classificado como alguma falta de algum sócio remisso, a sanção aplicável poderia ser a dissolução parcial de sociedade – como se reconhecera na sentença do caso em análise – mas não a exclusão do sócio da participação nos lucros, enquanto ele ainda integrasse os quadros da sociedade.

Vincular a participação nos resultados única e exclusivamente aos dias de trabalho dedicados à empresa implica admitir que, em alguns cenários particulares, os sócios poderiam ser excluídos dos lucros. O que violaria a regra extraída do art. 1.008 do Código Civil2 e permitiria que tal cláusula fosse classificada como um pacto leonino.

Lembre-se que o elemento típico que diferencia a sociedade das outras figuras associativas plurilaterais é o seu objetivo específico, ou seja, a obtenção e distribuição dos lucros sociais. Assim, a atividade escolhida como objeto é apenas o instrumento para a consecução do verdadeiro fim natural à sociedade3.

No direito brasileiro, a distribuição de lucros e participação nas perdas como elemento essencial à sociedade tornou-se tão natural, que o Novo Código Civil brasileiro o traz na própria definição de contrato de sociedade. Na parte final do artigo 981, o Código explicita que o sócio, isto é, aquele que celebra contrato de sociedade, obriga-se necessariamente à partilha dos resultados 4.

É o próprio status socii que demanda não apenas o recebimento dos lucros, mas também a assunção de uma parte nos resultados negativos. Conforme F. K. Comparato5, esse é um elemento fundamental na caracterização do sócio nas modernas sociedades, e que aparta o sócio dos debenturistas ou dos titulares de partes beneficiárias, por exemplo, já que estes últimos não participam do risco do empreendimento social.

A comunhão de escopo (ou fim comum) das sociedades no direito brasileiro é elemento essencial desse contrato6. Consequentemente, uma situação jurídica em que não há essa comunhão, não há relação societária7. Daí ser possível imaginar que, conforme o contrato de sociedade foi se aproximando da noção de empresa, servindo-lhe como a natural veste jurídica para a atividade econômica, o risco tornar-se-ia indissociável da própria concepção de sociedade8.

A estrutura da sociedade moderna, impregnada da noção de empresarialidade, é avessa à societas donationis causa9. Isto é, àquele contrato de sociedade em que a relação entre o aporte e a participação nos resultados estava pautado por um conteúdo de liberalidade, normalmente caracterizado pela circunstância em que os sócios constituíssem um contrato de sociedade com o objetivo de transferir bens de um patrimônio a outro, sem que houvesse a constituição de qualquer crédito ou débito correlato10.

Nesse sentido esclarece R. Sztajn11 que “a imputação da atividade empresarial parece estar relacionada à assunção de riscos à possibilidade de perda da riqueza investida no exercício da empresa”, daí sua necessária assunção ser ainda mais severa nas sociedades mais próximas da empresa, como a sociedade limitada ou a sociedade anônima, as quais proíbem inclusive a presença do sócio de indústria (art. 1.055, §2º, do CC/02)12-13.

O sócio de indústria

A figura do sócio de indústria (ou sócio de serviços) é, aliás, um assunto que passou despercebido no julgamento do Recurso Especial nº 2.053.655-SP e que seria crucial para o caso em análise.

O Tribunal de São Paulo observou, e o Superior Tribunal de Justiça reiterou, que a sociedade em questão dispunha de “capital diminuto” no valor de R$ 1.000,00 (mil reais) cujo objeto era a prestação de serviços de consultoria. Esse fato foi levado em consideração para o reconhecimento da validade da distribuição dos lucros conforme os dias efetivamente trabalhados.

Existe, porém, uma diferença substancial entre o prestador de serviços que atua em favor da sociedade e o sócio, que não somente pode trabalhar na realização do objeto social como também participa na estruturação da organização empresarial. A validação da cláusula de distribuição de lucros narrada no Recurso Especial nº 2.053.655-SP destitui os membros da sociedade de seu “status socii”, admitindo a pejotização do simples prestador de serviços, pois permite sua inclusão no contrato social, enquanto o desvincula das exigências impostas pelo escopo comum da empresa.

De qualquer modo, a decisão do STJ ignora por completo a proibição ao sócio de indústria presente no art. 1.055, §2º, do CC/02. O caso em análise trata especificamente de uma sociedade limitada, de modo que não seria possível que os sócios fossem chamados a participarem e contribuírem exclusivamente com seu trabalho. Por sinal, a vedação ao sócio de indústria tem uma razão lógica, pois ela é essencial à própria estrutura da responsabilidade limitada.

Se o capital social representa a garantia dos credores frente às obrigações e negócios constituídos pela sociedade, o sócio de indústria, cuja contribuição não se dá em capital, não pode ser admitido na sociedade limitada, sob pena de esvaziamento da garantia concedida a terceiros. Razão pela qual a cláusula aprovada na sociedade objeto do Recurso Especial nº 2.053.655-SP deveria ter sido rejeitada não apenas por abriria uma brecha à sociedade leonina, mas também porque implicaria a admissão de uma sociedade limitada composta por sócios de indústria.

Conclusão

Na decisão proferida no Recurso Especial nº 2.053.655-SP, o Superior Tribunal de Justiça enfraquece o ambiente societário brasileiro, pois, ao se recusar a analisar as implicações e consequências das cláusulas, ele esvazia a proibição à constituição das sociedades leoninas; ao mesmo tempo em que sinaliza à possibilidade de se admitir sócios de indústria em sociedades limitadas, enfraquecendo a garantia patrimonial de terceiros.

Referências

1 STJ, REsp. nº 2.053.655-SP, 4ª Turma, Rel. Min. Raul Araújo, j. 11/02/2025, DJEN 05/03/2025.

2 Art. 1.008, do CC/02: É nula a estipulação contratual que exclua qualquer sócio de participar dos lucros e das perdas.

3 Comparato, Fábio Konder, O direito ao lucro nos contratos sociais, in Id, Direito Empresarial – estudos e pareceres, São Paulo, Saraiva, 1995, pp. 150-151.

4 Art. 981, do CC/02: Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.

5 O direito ao lucro nos contratos sociais. cit., p. 154.

6 Huck, Marcelo, Pactos societários leoninos, in RT 760 (1999), p. 66-67.

7 Comparato, Fábio Konder, O direito ao lucro nos contratos sociais. cit., p. 154.

8 Verçosa, Haroldo Malheiros Duclerc, Curso de direito comercial – Teoria geral das sociedades. As sociedades em espécie do Código Civil, Vol. 2, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 128.

9 Em Ulp. 31 ad ed. D. 17, 2, 5, 2, Ulpiano registra que “Donationis causa societas recte non contrahitur”, isto é, a sociedade “donationis causa” não se constitui conforme o direito.

10 F. Cancelli, Società (Diritto Romano), in NNDI 17 (1970), p. 501.

11 Teoria jurídica da empresa, São Paulo, Atlas, 2004, p. 159.

12 Essa noção já era percebida por J. X. Carvalho de Mendonça (Tratado de direito comercial brasileiro, Vol. 3, 6ª Ed., São Paulo, Freitas bastos, 1963, p. 46) em cuja obra ele expressa que “a sociedade corre a álea do comércio; quando perde, perdem todos os sócios; perdendo um, os outros não podem ganhar”.

13 Art. 1.055. O capital social divide-se em quotas, iguais ou desiguais, cabendo uma ou diversas a cada sócio. […] § 2o É vedada contribuição que consista em prestação de serviços.

Equipe relacionada

Gabriel José Costa Bernardi

Gabriel José Costa Bernardi