A eficiência da justiça gratuita na esfera trabalhista: o paradoxo dos incentivos

Gratuidade de justiça enquanto mecanismo de acesso à justiça
No campo jurídico, a discussão sobre acesso à justiça recebeu contribuições significativas dos juristas Mauro Cappelletti e Bryant Garth, sobretudo pela sua obra Acesso à justiça, publicada em 19881. Para os juristas, o conceito de acesso à justiça serve para definir duas finalidades básicas do sistema jurídico: garantir o acesso igualitário para todos e produzir resultados justos, individual ou socialmente. Cappelletti e Garth entendem que o acesso efetivo à justiça e suas instituições é premissa básica da justiça social2 e para ser concretizado se faz necessário identificar seus obstáculos e superá-los.
O primeiro obstáculo identificado por Cappelletti e Garth foram as custas processuais suportadas pelos litigantes, incluindo os honorários advocatícios (contratuais e de sucumbência)3.
Os dados coletados por meio do Projeto Florença evidenciaram que as despesas processuais se tornavam ainda mais avultantes 1) em decorrência da morosidade do sistema judiciário para proferir uma decisão exequível e 2) nos processos com valor da causa pequeno. Nesses casos, o dispêndio financeiro dos litigantes por vezes excedia o montante da controvérsia ou tornava a demanda insignificante.
Nesse cenário, Cappelletti e Garth ensinam que, para haver um efetivo acesso à justiça, faz-se necessário que o Estado desenvolva mecanismos que tornem o acesso ao Poder Judiciário economicamente viável para todos os cidadãos. Como exemplo, citam os sistemas de assistência judiciária, abordados na primeira onda renovatória de soluções práticas para os problemas do acesso à justiça4.
No ordenamento jurídico brasileiro, o direito de acesso à justiça é assegurado pela Constituição Federal de 1988 (art. 5º, incisos XXXV e LXXIV) e pela legislação infraconstitucional, a exemplo do Código de Processo Civil (art. 98), da Consolidação das Leis do Trabalho (art. 790) e da Lei n.º 1.060/50, que estabelece normas para a concessão de assistência judiciária.
Neste texto analisaremos a previsão normativa da gratuidade de justiça na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), antes e após as alterações promovidas pela Lei nº 13.467/2017 (Reforma Trabalhista); o entendimento consolidado pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) por meio da Súmula 463, item I; a aplicação dessas normas pelos juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais do trabalho e os principais impactos na Justiça do Trabalho, segundo um estudo coordenado pelo sociólogo José Pastore, professor titular da Universidade de São Paulo (USP).
Concessão da gratuidade de justiça na Justiça do Trabalho, antes e após a Reforma Trabalhista
O Projeto de Lei da Câmara (PLC) 38/2017, que originou a Reforma Trabalhista, foi proposto no Governo Temer, momento em que o país passava por uma crise econômica e política. Os parlamentares defensores da referida proposta legislativa afirmavam que os principais objetivos da Reforma Trabalhista era a criação de empregos, a consolidação de direitos, o implemento da segurança jurídica nas relações de trabalho e a redução da quantidade de litígios. Uma das alterações propostas pela reforma dizia respeito aos requisitos necessários à concessão da justiça gratuita.
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de 1973 previa em seu art. 790, § 3º, que a concessão do benefício da gratuidade de justiça era uma faculdade dos juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais do trabalho, àqueles que (1) percebessem salário igual ou inferior ao dobro do mínimo legal, ou (2) declarassem, sob as penas da lei, que não estavam em condições de pagar as custas do processo sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família. Nestes termos:
“§ 3º É facultado aos juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais do trabalho de qualquer instância conceder, a requerimento ou de ofício, o benefício da justiça gratuita, inclusive quanto a traslados e instrumentos, àqueles que perceberem salário igual ou inferior ao dobro do mínimo legal, ou declararem, sob as penas da lei, que não estão em condições de pagar as custas do processo sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família.”
Todavia, o referido dispositivo foi alterado pela Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, conhecida popularmente como Reforma Trabalhista. Com a nova redação, a concessão do benefício da gratuidade de justiça ficou restrita àqueles que percebessem salário igual ou inferior a 40% (quarenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. Ou seja, a mera declaração de hipossuficiência econômica firmada pela parte não seria suficiente para presumir seu estado de miserabilidade, a fim de se conceder os benefícios da justiça gratuita, sendo necessário o atendimento de um requisito objetivo. In verbis:
“§ 3º É facultado aos juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais do trabalho de qualquer instância conceder, a requerimento ou de ofício, o benefício da justiça gratuita, inclusive quanto a traslados e instrumentos, àqueles que perceberem salário igual ou inferior a 40% (quarenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social”
Além da referida alteração, a Lei nº 13.467/2017 também incluiu o §4º no art. 790, que prevê a concessão do benefício da justiça gratuita àquele que comprovar insuficiência de recursos para o pagamento das custas do processo. Confira-se:
§ 4º O benefício da justiça gratuita será concedido à parte que comprovar insuficiência de recursos para o pagamento das custas do processo.
Nesses termos, a partir da Reforma Trabalhista a concessão da gratuidade de justiça ficou restrita àquele que 1) perceber salário igual ou inferior a 40% (quarenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social ou 2) comprovar insuficiência de recursos para o pagamento das custas do processo. Destarte, os critérios para a concessão da gratuidade de justiça se tonaram mais objetivos e a mera declaração de hipossuficiência se tornou insuficiente.
Todavia, apesar das alterações promovidas pela Reforma Trabalhista no art. 790, §§ 3º e 4º, da CLT, os juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais do trabalho continuam aplicando o entendimento consolidado na Súmula 463, item I, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que abarca interpretação do ordenamento jurídico vigente antes da Reforma Trabalhista de 2017.
Referida súmula reforça a redação anteriormente dada ao §3º, do art. 790, que autorizava a concessão do benefício da justiça gratuita àqueles que meramente declarassem, sob as penas da lei, que não estavam em condições de pagar as custas do processo sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família:
ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. COMPROVAÇÃO (conversão da Orientação Jurisprudencial nº 304 da SBDI-1, com alterações decorrentes do CPC de 2015) – Res. 219/2017, DEJT divulgado em 28, 29 e 30.06.2017 – republicada – DEJT divulgado em 12, 13 e 14.07.2017
I – A partir de 26.06.2017, para a concessão da assistência judiciária gratuita à pessoa natural, basta a declaração de hipossuficiência econômica firmada pela parte ou por seu advogado, desde que munido de procuração com poderes específicos para esse fim.
Assim, o ônus do § 4º, do art. 790, da CLT, atribuído pela Reforma Trabalhista à parte que pleiteia à concessão da justiça gratuita, foi transferido à parte contrária, a quem compete comprovar a capacidade financeira da parte requerente para arcar com as custas do processo e com eventuais honorários sucumbenciais.
Segundo estudo coordenado pelo sociólogo José Pastore, professor titular da Universidade de São Paulo (USP)5, intitulado “O custo da insegurança jurídica na área trabalhista”, a inobservância, por parte do Poder Judiciário, das alterações promovidas pela Reforma Trabalhista tem gerado prejuízos aos cofres públicos.
Além dessa consequência negativa, também é possível refletir sobre como a concessão da justiça gratuita baseada em mera declaração de hipossuficiência pode estimular a litigância de má-fé/predatória e impactar o acesso à justiça por aqueles que realmente não possuem condições financeiras para arcar com as custas do processo.
Repercussões da concessão da gratuidade de justiça com base na mera declaração de hipossuficiência
No estudo supramencionado do professor Pastore, foram analisados processos judiciais com o objetivo de identificar se, neles, os julgadores haviam cometido ativismo judicial – isto é, quando um juiz toma uma decisão que não está prevista em lei ou até mesmo contrária a legislação. A análise foi realizada a partir de dez temas, dentre eles a concessão da gratuidade de justiça.
O professor explicou que, ao estipular critérios objetivos para a concessão do benefício da justiça gratuita, a Lei 13.467/2017 pretendia revolucionar as relações de trabalho, reduzindo a judicialização e trazendo mais segurança aos contratos trabalhistas. Afirmou que, inicialmente, o número de processos diminuiu, mas com o tempo ele voltou a crescer, pois os juízes deixaram de observar as alterações trazidas pela Lei 13.467/2017.
No referido estudo, a análise das decisões revelou que o benefício da justiça gratuita é reiteradamente concedido a reclamantes que possuem condições financeiras para arcar com as custas do processo e com os honorários sucumbenciais, o que contraria a CLT e a Reforma Trabalhista. O professor cita como exemplo um caso em que os juízes concederam gratuidade de justiça a um reclamante que possuía um carro BMW no valor de R$ 880 mil.
O estudo revela que no período de 2019-2024, 636.583 processos transitaram em julgado com pedido de gratuidade da prestação jurisdicional. Desses, os juízes concederam o benefício em 486 mil, sendo a maioria com base em mera autodeclaração da parte. Considerando que o valor médio dessas ações no período de 2019-2024, foi de R$ 116.529,00, e utilizando-se, de modo conservador, do percentual de 2% a título de custas, o professor Pastore calculou que o Erário deixou de arrecadar cerca R$ 1,132 bilhão.
A concessão da gratuidade de justiça com base em mera autodeclaração da parte também impacta diretamente na quantidade de litígios judicializados.
De acordo com o referido estudo, após um primeiro momento de queda no número de processos, a quantidade de ações na Justiça do Trabalho voltou a crescer, totalizando 5,4 milhões de processos em 2023. Considerando que o Poder Judiciário dispõe de um número limitado de recursos materiais que o permite admitir novas ações e julgá-las em um tempo razoável (ex. número de juízes, servidores etc.), pode-se dizer que o aumento no número de processos afeta seu funcionamento e, por consequência, o exercício do direito de acesso à justiça por parte daqueles que realmente necessitam da proteção jurisdicional do Estado.
Além disso, a partir desse estudo é possível refletir sobre como a concessão da gratuidade de justiça com base em mera autodeclaração de hipossuficiência pode estimular a litigância predatória e de má-fé. A suficiência da autodeclaração permite que pessoas que possuem capacidade financeira para arcar com as custas judiciais e eventuais honorários sucumbenciais deixem de arcar com os custos do acionamento jurisdicional, bem como possibilita e até incentiva que a parte faça pedidos descabidos e de valores elevados, pois sabe de antemão que os custos de eventual sucumbência serão transferidos à parte reclamada ou ao Estado.
A título exemplificativo, cita-se o Incidente de Recursos Repetitivos suscitado nos autos do processo nº 0000135-22.2023.5.05.0008, que tramita perante o Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, no qual se discute a configuração ou não de ato ilícito por restrição de uso de banheiro pelo trabalhador. O IRDR também afetou o recurso ordinário nº 0000184-78.2023.5.05.0003, envolvendo o serviço de teleatendimento/telemarketing (call centers) prestado pela empresa.
Intimada a se manifestar, a empresa juntou aos autos um Auto Circunstanciado de Inspeção Judicial (“Auto de Inspeção”) realizada em suas dependências, para avaliar as reais condições de trabalho dos empregados em razão de inúmeras reclamações trabalhistas contendo idênticos pedidos, dentre eles o de dano moral por suposta restrição de uso do banheiro, inclusive de trabalhadores que laboravam na modalidade home office. O Auto de Inspeção foi produzido por dois Juízes do Trabalho do próprio TRT-5, que presenciaram a rotina de trabalho dos empregados e confirmaram que a empresa não faz qualquer tipo de proibição ou restrição ao uso de sanitários ao longo da jornada de trabalho, não havendo que se falar em ato ilícito da empregadora ou dano moral.
Nesse cenário, o alto número de reclamações trabalhistas com pedidos desconexos da realidade fática do trabalhador e com valores exorbitantes evidencia uma litigância predatória de alguns escritórios de advocacia, que não temem a possibilidade de seus clientes serem condenados a pagar as custas processuais e honorários advocatícios em caso de eventual sucumbência, tendo em vista a facilidade de comprovarem sua condição de miserabilidade através de mera declaração de hipossuficiência.
Conclusão
A partir das alterações promovidas pela Lei nº 13.467/2017 no art. 790, §§ 3º e 4º, da CLT, a mera declaração de hipossuficiência econômica firmada pela parte deixou de ser suficiente para presumir o estado de miserabilidade da pessoa natural, a fim de se conceder os benefícios da justiça gratuita.
Apesar disso, os juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais do trabalho continuam aplicando o entendimento consolidado na Súmula 463, item I, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que abarca interpretação do ordenamento jurídico vigente antes da Reforma Trabalhista, no sentido de que a autodeclaração é suficiente para a concessão da justiça gratuita.
As consequências desse entendimento são os prejuízos aos cofres públicos, apontados pelo estudo do professor José Pastore, além do estímulo à litigância predatória e de má-fé e do impacto negativo no exercício do direito de acesso à justiça por parte daqueles que realmente não possuem condições financeiras para arcar com as custas do processo e com eventuais honorários sucumbenciais.
Nesse cenário, não aparenta ser razoável que o entendimento consolidado pela Súmula 463, item I, do TST, continue disciplinando a concessão da gratuidade de justiça em detrimento das alterações promovidas pela Reforma Trabalhista.
Exigir a comprovação da hipossuficiência econômica da parte que possui renda acima do teto legal previsto no art. 790, §3º, da CLT, não atenta contra seu direito de acesso à justiça nem nega a assistência jurisdicional do Estado a ela, mas garante que aqueles que efetivamente não possuem condições financeiras para demandar em juízo sem o comprometimento do próprio sustento ou de sua família possam dispor de recursos do Poder Judiciário que viabilizem o exercício de seu direito de acesso à justiça.