O Papel do CADE e a Punição de Pessoas Físicas em Casos de Formação de Cartéis

O voto do conselheiro Carlos Jacques durante a sessão de julgamento do dia 12 de fevereiro de 2025 do tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“CADE”), referente ao processo administrativo nº 08700.003528/2016-21, que condenou duas pessoas por envolvimento em cartel no setor de cimento e concreto, reacendeu a discussão sobre a punição de pessoas físicas pelo CADE em casos de formação de cartel1.
Embora não seja um tema novo, voltou a ser debatido nas últimas semanas entre os profissionais do direito, dado o posicionamento do conselheiro Jacques, que em seu voto afirmou a necessidade de uma reflexão mais aprofundada sobre os custos e benefícios da persecução de pessoas físicas envolvidas em cartéis, destacando especialmente o poder dissuasório da autoridade de defesa da concorrência2.
Nesse contexto, até que ponto a penalização de pessoas físicas pelo CADE na esfera administrativa é justificável? E quais seriam os benefícios ou prejuízos à defesa da concorrência resultantes da extinção da punição das pessoas físicas na formação de cartel?
A Defesa da Concorrência
A regulamentação do poder econômico no mercado baseia-se na premissa socioeconômica fundamental de que qualquer agrupamento social que pretenda operar dentro de uma economia de mercado necessita de um conjunto mínimo de regras para garantir o funcionamento adequado do mercado3.
Em um ordenamento jurídico onde a defesa da concorrência requer a intervenção do Estado na economia, por meio da regulamentação e fiscalização das relações econômicas, como é o caso do Brasil, é essencial entender até que ponto essa intervenção estatal pode regular e, ao mesmo tempo, respeitar a aplicação do direito concorrencial previsto na Constituição Econômica4.
Nesse sentido, a defesa da concorrência busca promover um ambiente de mercado caracterizado pela concorrência perfeita, através de uma política estatal de controle e defesa. O objetivo é possibilitar, na medida do possível, uma concorrência ideal. Esse processo se dá por meio do controle e fiscalização das práticas de mercado, tendo, entre suas finalidades, evitar que um único agente econômico tenha o poder de determinar isoladamente aspectos relevantes do mercado, como preços, produção, qualidade e investimentos5.
A Formação de Cartel
Historicamente, o sistema de produção capitalista tende a se concentrar, de modo que quanto maior a empresa, maior o seu lucro e, consequentemente, maiores se tornam as possibilidades desse ente controlar o mercado6.
Com base na análise econômica dos crimes e das penas, quando essa possibilidade de controle de mercado se alinha com a percepção de que ultrapassar limites legais pode resultar em vantagens significativas, as empresas podem ser levadas a concluir que a atividade ilegal gera ganhos e benefícios superiores aos provenientes das atividades legais7.
Entre as atividades ilegais que afetam a concorrência e o mercado, trazendo consequências desastrosas para a sociedade, destaca-se a formação de cartel. O cartel pode ser definido como um acordo entre concorrentes com a intenção de prejudicar a concorrência ou aumentar os lucros dos participantes, em detrimento dos consumidores, de outros concorrentes e da ordem econômica8.
Contudo, existem doutrinas que afirmam haver uma ausência de uma teoria jurídica consolidada sobre cartéis, o que dificultaria a chegada a uma definição concreta e abrangente do que constitui um cartel9.
O Papel do Conselho Administrativo de Defesa Econômica
Em 1995, com a chegada da Lei nº 8.884 de 1994, o CADE passou a atuar com maiores poderes e competências, semelhante aos moldes atuais. Contudo, foi somente em 2011, com a estruturação do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência a partir da Lei nº 12.529 (“Lei 12.529”), que a instituição adquiriu uma estrutura adequada para a condução de processos administrativos10.
No contexto da defesa da concorrência, o CADE desempenha um papel crucial na proteção e promoção da concorrência no Brasil, por meio da análise e reprimenda de abusos econômicos, com total independência da esfera administrativa da judicial. Como a entidade responsável por zelar pela livre concorrência, sua missão inclui prevenir práticas restritivas, como a formação de cartéis, fusões prejudiciais e abuso de posição dominante11.
A Punição de Pessoas Físicas
De acordo com o artigo 31 da Lei nº 12.529, a legislação é aplicável a pessoas físicas no caso de cometimento de infrações de ordem econômica. O artigo 37, incisos II e III, estabelece os valores das multas a que as pessoas físicas estão sujeitas. Além disso, o rol do artigo 38 define penas não pecuniárias, as quais são determinadas com base na gravidade dos fatos e no interesse público em geral12.
Entretanto, além do conselheiro Jacques, outros profissionais consideram que o órgão antitruste tem sido lento para punir as pessoas físicas envolvidas nos casos de carteis, como administradores e terceiros13.
Eles ressaltam que a presença de pessoas físicas envolvidas tende a retardar os processos administrativos, tendo em vista e dificuldade de citação pelo órgão administrativo, que pode levar anos para concluir todas as citações das pessoas físicas envolvidas14. Além disso, outro argumento em favor do fim da punição das pessoas físicas é com relação ao pagamento da multa, que conforme levantado, na maioria dos casos de carteis, as multas impostas não são pagas15. Não suficiente a isto, quando pagas, as multas podem gerar um efeito dissuasório insuficiente, e até mesmo incentivador, haja vista que mesmo com sanções a alta lucratividade acaba que por incentivar tal prática16.
Por outro lado, o objetivo por trás da punição de pessoas físicas baseia-se no “problema de agência”, que ocorre quando os interesses dos administradores e de terceiros estão desalinhados com os da organização. Ou seja, se os administradores e terceiros desejam cometer atos ilícitos, mesmo que esses atos não sejam do interesse da organização, eles podem beneficiar-se pessoalmente da prática ilegal. Assim, a organização pode não ser a principal responsável por rechaçar o ato, devido a esse “conflito de interesses”. Diante disso, o sistema dual de responsabilização adotado pelo Estado, que distingue entre pessoas jurídicas e físicas, torna-se justificável17.
Conclusão
A análise da punição de pessoas físicas em casos de formação de cartéis revela um tema complexo e controverso, que se desdobra em várias frentes. Inicialmente, é importante destacar que a autonomia do CADE, garantida pela legislação, confere ao órgão a responsabilidade de zelar pela defesa da concorrência e a capacidade de penalizar práticas anticompetitivas, incluindo a responsabilização de indivíduos envolvidos em infrações econômicas.
Entretanto, a execução dessa punição enfrenta desafios significativos. O órgão antitruste tem sido criticado por sua lentidão na penalização de administradores e terceiros, o que pode retardar os processos administrativos e, em muitos casos, resultam em multas não pagas ou com efeito dissuasório insuficiente. Neste contexto, é relevante considerar a hipótese de que o Judiciário poderia ser o único responsável por penalizar pessoas físicas no âmbito criminal. Essa mudança poderia minimizar a sobrecarga do sistema penal e evitar conflitos entre as esferas administrativa e judicial, além de prevenir custos excessivos e o fenômeno do bis in idem.
Por outro lado, a base da legislação que permite a punição de indivíduos surge do reconhecimento do “problema de agência”, onde os interesses dos administradores podem estar desalinhados com os da organização, e vice-versa. Isso reforça a ideia de que a responsabilização individual é essencial para promover a conformidade com os interesses coletivos e a integridade do mercado.
Por fim, o debate atual confirma a necessidade de uma reavaliação da eficácia das punições às pessoas físicas, bem como uma reavaliação do equilíbrio entre a atuação do CADE e a função do sistema judicial, considerando as dificuldades práticas enfrentadas.
De todo modo, é crucial que a responsabilização de pessoas físicas seja aplicada de maneira estratégica, a fim de promover um ambiente de negócios que assegure concorrência justa e sustentável.
Referências
1 VALOR ECONÔMICO. CADE discute punição de pessoas físicas em casos de cartel. São Paulo, 18 mar. 2025. Disponível em: <https://www.valoreconomico.com.br/noticia-cade-cartel>. Acesso em: 19 mar. 2025.
2 BRASÍLIA. Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE. Processo Administrativo nº 08700.003528/2016-21. Representante: CADE ex officio. Representados: Fernando Manuel Vilas Boas Ribeiro da Costa, João Pedro Neto de Avelar Ghira e José Abel Pinheiro Caldas de Oliveira. Brasília, 17 fev. 2025. Disponível em: <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcRxj0cQsmrS7OypljkCQATYKTwNEhN6gsPUvhFgfKEWL>. Acesso em: 19 mar. 2025.
3 FILHO, Calixto S. Direito Concorrencial – 2ª Edição 2021. 2. ed. p. 35. Rio de Janeiro: Forense, 2021. E-book. p.35. ISBN 9786559640836. Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br/read er/books/9786559640836/>. Acesso em: 18 mar. 2025
4 FILHO, Calixto S., ref. 3, p. 1.
5 ALBUQUERQUE, Felipe Braga; LEAL, Leonardo José Peixoto. Prática de Cartel no Brasil: Um Estudo sobre as Decisões do CADE e o Perfil das Condenações por Cartel. Conpedi Law Review, Florianopolis, Brasil, v. 1, n. 8, p. 66–87, 2016. DOI: 10.26668/2448-3931_conpedilawreview/2015.v1i8.3477. Disponível em: https://indexlaw.org/index.php/conpedireview/article/view/3477. Acesso em: 18 mar. 2025.
6 ALBUQUERQUE, Felipe Braga; LEAL, Leonardo José Peixoto., ref. 5. p. 2.
7 BOSON, Daniel S. Sanções Aplicada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) a Empresas no Cartel do Cimentos: uma visão da análise econômica das penas. RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 272, p. 119-144, ago. 2016.
8 ALBUQUERQUE, Felipe Braga; LEAL, Leonardo José Peixoto., ref. 5. p. 2.
9 FILHO, Calixto S., ref. 3, p. 1.
10 ALBUQUERQUE, Felipe Braga; LEAL, Leonardo José Peixoto., ref. 5. p. 2.
11 ALBUQUERQUE, Felipe Braga; LEAL, Leonardo José Peixoto., ref. 5. p. 2.
12 BRASIL. Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011. estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – SBDC e dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 nov. 2011.
13 VALOR ECONÔMICO. ref. 1, p. 1.
14 VALOR ECONÔMICO. ref. 1, p. 1.
15 VALOR ECONÔMICO. ref. 1, p. 1.
16 BOSON, Daniel S.ref. 7 p. 2.
17 BOSON, Daniel S.ref. 7 p. 2.