As distribuições de lucros no Brasil – Comentários ao REsp. nº 2.053.655-SP 

  Introdução  

No último dia 11 de fevereiro de 2025, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça julgou o Recurso Especial nº 2.053.655-SP, relatado pelo Ministro Raul Araújo, cujo objeto referia-se à legalidade da distribuição dos resultados sociais a partir de critérios desvinculados da participação dos sócios no capital social.  

No caso em questão, os sócios de uma sociedade limitada, que exercia a atividade de consultoria no mercado bancário, haviam deliberado por maioria que os lucros deveriam ser partilhados proporcionalmente aos dias trabalhados por cada sócio na empresa, e não conforme a sua participação no capital. Na ocasião, houve apenas o voto dissidente de uma das sócias, que, inconformada com a decisão tomada – haja vista não ter a disponibilidade de dedicar-se em tempo integral à sociedade – decidiu ingressar com a ação judicial, a fim de que fosse declarada a nulidade da decisão que modificara a forma de repartição dos resultados. 

Na sentença, o juízo de primeiro grau reconheceu que os novos critérios de distribuição dos resultados implicariam a exclusão da autora na participação na empresa, uma vez que ela não teria mais uma participação ativa no cotidiano dos negócios empresariais. Mas ressalvou, contudo, que a intenção da autora em não mais querer prestar serviços pessoalmente à atividade empresarial não poderia ser interpretada como uma renúncia às suas quotas sociais; nem poderia ser empregada como razão para a dissolução extrajudicial da sociedade, pois o contrato social não previa essa hipótese. 

 

A posição do Tribunal de Justiça de São Paulo 

Em sede de Apelação, o Tribunal de Justiça de São Paulo acolheu o recurso da sociedade e reformou a sentença de primeiro grau. No acórdão relatado pelo Des. Francisco Eduardo Loureiro, ficou reconhecido que – além de não haver previsão expressa no contrato social e no regimento interno da sociedade que privasse qualquer um dos sócios dos lucros sociais – os novos critérios para repartição dos resultados não implicavam uma violação à lei. 

O Tribunal de Justiça de São Paulo fundamentou que o art. 1.007 do CC/02 conteria uma norma dispositiva, já que imporia a participação nos resultados proporcionalmente às respectivas quotas “salvo estipulação em contrário”. Razão pela qual admitiu que a divisão desigual dos lucros e perdas recairia dentro da autonomia privadas das partes, que seriam a liberdade de fixar os parâmetros que desejarem na repartição dos resultados, desde que observado o limite imposto pelo art. 1.008 do CC/02. 

Interessantemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo ponderou que não haveria nenhuma violação à norma cogente do art. 1.008 do CC/02, pois “no caso concreto, a situação jurídica criada pelo regimento interno não é a de exclusão de qualquer sócio da participação nos lucros, mas sim a de que tal participação decorrerá do trabalho desenvolvido por cada um dos sócios”. E complementa dizendo que “tal cláusula não somente é válida, mas se ajusta à própria natureza da sociedade, de diminuto capital social e cuja atividade envolve prestação de serviços. Natural e adequado que os rendimentos dos sócios sejam proporcionais ao número de horas trabalhadas”. 

 

A posição do Superior Tribunal de Justiça 

Após o proferimento do acórdão pelo Tribunal de Justiça, a demandante recorreu ao Superior Tribunal de Justiça, o qual negou provimento ao recurso especial, para reconhecer a legalidade da disposição societária que permitira a distribuição dos lucros proporcionalmente aos dias trabalhados na empresa. 

A decisão foi tomada por unanimidade dos presentes da 4ª Turma do STJ, e o acórdão foi relatado pelo Min. Raul Araújo, cujo voto ecoou grande parte da fundamentação previamente fixada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, reiterando a autonomia contratual das partes em fixar critérios atípicos de repartição dos resultados e rejeitando a violação ao art. 1.008 do CC/02. Merece destaque a ponderação do ministro relator quando registra que1: 

Na espécie, a vontade expressa pela maioria da assembleia dos sócios deliberou e decidiu um novo critério de cálculo de distribuição de dividendos, pautado não na participação social, mas sim aos dias trabalhados por cada sócio, ou seja, a participação nos lucros passou a ser correspondente aos dias de efetivo labor, não havendo falar em exclusão absoluta de sócio ao recebimento dos lucros e participação nas perdas e, por conseguinte, em violação ao art. 1.008 do Código Civil”. 

 

A repartição dos resultados e crítica ao REsp. nº 2.053.655-SP 

 

Tanto o julgamento da apelação pelo TJSP, quanto o julgamento do Recurso Especial pelo STJ reconheceram que o art. 1.007 do CC/02 poderia ser interpretado para, dali, extrair uma norma dispositiva que fixaria a distribuição dos lucros e das perdas conforme a participação no capital social.  

Dessa forma, não há uma vedação prévia para que o poder negocial atribuídos às pessoas capazes possa instituir uma estrutura normativa diferente, fixando a repartição dos resultados conforme um critério diferente. O que, em tese, sinalizaria uma permissão à regra validada pelo STJ no Recurso Especial nº 2.053.655-SP, quanto a uma participação calculada proporcionalmente aos dias de trabalho dedicados à empresa. 

No entanto, ao julgar o Recurso Especial nº 2.053.655-SP, o judiciário brasileiro parece não ter se atentado às implicações de se admitir uma cláusula como aquela que estava em discussão para uma sociedade constituída sob a forma de sociedade limitada. 

Aceitar que a distribuição dos lucros estivesse exclusivamente atrelada aos dias efetivamente trabalhados na empresa significaria reconhecer que o sócio, independentemente de sua participação no capital social, poderia não receber nenhum lucro, caso não comparecesse nem dedicasse trabalho à execução do objeto social. Ainda que esse comportamento pudesse ser classificado como alguma falta de algum sócio remisso, a sanção aplicável poderia ser a dissolução parcial de sociedade – como se reconhecera na sentença do caso em análise – mas não a exclusão do sócio da participação nos lucros, enquanto ele ainda integrasse os quadros da sociedade. 

Vincular a participação nos resultados única e exclusivamente aos dias de trabalho dedicados à empresa implica admitir que, em alguns cenários particulares, os sócios poderiam ser excluídos dos lucros. O que violaria a regra extraída do art. 1.008 do Código Civil2 e permitiria que tal cláusula fosse classificada como um pacto leonino. 

Lembre-se que o elemento típico que diferencia a sociedade das outras figuras associativas plurilaterais é o seu objetivo específico, ou seja, a obtenção e distribuição dos lucros sociais. Assim, a atividade escolhida como objeto é apenas o instrumento para a consecução do verdadeiro fim natural à sociedade3. 

No direito brasileiro, a distribuição de lucros e participação nas perdas como elemento essencial à sociedade tornou-se tão natural, que o Novo Código Civil brasileiro o traz na própria definição de contrato de sociedade. Na parte final do artigo 981, o Código explicita que o sócio, isto é, aquele que celebra contrato de sociedade, obriga-se necessariamente à partilha dos resultados 4. 

É o próprio status socii que demanda não apenas o recebimento dos lucros, mas também a assunção de uma parte nos resultados negativos. Conforme F. K. Comparato5, esse é um elemento fundamental na caracterização do sócio nas modernas sociedades, e que aparta o sócio dos debenturistas ou dos titulares de partes beneficiárias, por exemplo, já que estes últimos não participam do risco do empreendimento social. 

A comunhão de escopo (ou fim comum) das sociedades no direito brasileiro é elemento essencial desse contrato6. Consequentemente, uma situação jurídica em que não há essa comunhão, não há relação societária7. Daí ser possível imaginar que, conforme o contrato de sociedade foi se aproximando da noção de empresa, servindo-lhe como a natural veste jurídica para a atividade econômica, o risco tornar-se-ia indissociável da própria concepção de sociedade8. 

 

A estrutura da sociedade moderna, impregnada da noção de empresarialidade, é avessa à societas donationis causa9. Isto é, àquele contrato de sociedade em que a relação entre o aporte e a participação nos resultados estava pautado por um conteúdo de liberalidade, normalmente caracterizado pela circunstância em que os sócios constituíssem um contrato de sociedade com o objetivo de transferir bens de um patrimônio a outro, sem que houvesse a constituição de qualquer crédito ou débito correlato10. 

Nesse sentido esclarece R. Sztajn11 que “a imputação da atividade empresarial parece estar relacionada à assunção de riscos à possibilidade de perda da riqueza investida no exercício da empresa”, daí sua necessária assunção ser ainda mais severa nas sociedades mais próximas da empresa, como a sociedade limitada ou a sociedade anônima, as quais proíbem inclusive a presença do sócio de indústria (art. 1.055, §2º, do CC/02)1213. 

 

O sócio de indústria 

A figura do sócio de indústria (ou sócio de serviços) é, aliás, um assunto que passou despercebido no julgamento do Recurso Especial nº 2.053.655-SP e que seria crucial para o caso em análise.  

O Tribunal de São Paulo observou, e o Superior Tribunal de Justiça reiterou, que a sociedade em questão dispunha de “capital diminuto” no valor de R$ 1.000,00 (mil reais) cujo objeto era a prestação de serviços de consultoria. Esse fato foi levado em consideração para o reconhecimento da validade da distribuição dos lucros conforme os dias efetivamente trabalhados. 

Existe, porém, uma diferença substancial entre o prestador de serviços que atua em favor da sociedade e o sócio, que não somente pode trabalhar na realização do objeto social como também participa na estruturação da organização empresarial. A validação da cláusula de distribuição de lucros narrada no Recurso Especial nº 2.053.655-SP destitui os membros da sociedade de seu “status socii”, admitindo a pejotização do simples prestador de serviços, pois permite sua inclusão no contrato social, enquanto o desvincula das exigências impostas pelo escopo comum da empresa. 

De qualquer modo, a decisão do STJ ignora por completo a proibição ao sócio de indústria presente no art. 1.055, §2º, do CC/02. O caso em análise trata especificamente de uma sociedade limitada, de modo que não seria possível que os sócios fossem chamados a participarem e contribuírem exclusivamente com seu trabalho. Por sinal, a vedação ao sócio de indústria tem uma razão lógica, pois ela é essencial à própria estrutura da responsabilidade limitada. 

Se o capital social representa a garantia dos credores frente às obrigações e negócios constituídos pela sociedade, o sócio de indústria, cuja contribuição não se dá em capital, não pode ser admitido na sociedade limitada, sob pena de esvaziamento da garantia concedida a terceiros. Razão pela qual a cláusula aprovada na sociedade objeto do Recurso Especial nº 2.053.655-SP deveria ter sido rejeitada não apenas por abriria uma brecha à sociedade leonina, mas também porque implicaria a admissão de uma sociedade limitada composta por sócios de indústria. 

 

Conclusão 

 

Na decisão proferida no Recurso Especial nº 2.053.655-SP, o Superior Tribunal de Justiça enfraquece o ambiente societário brasileiro, pois, ao se recusar a analisar as implicações e consequências das cláusulas, ele esvazia a proibição à constituição das sociedades leoninas; ao mesmo tempo em que sinaliza à possibilidade de se admitir sócios de indústria em sociedades limitadas, enfraquecendo a garantia patrimonial de terceiros. 

 

Equipe relacionada

Gabriel José Bernardi Costa

Gabriel José Bernardi Costa