Responsabilidade dos cotistas em FIIs: a nova interpretação da CVM no Ofício-Circular CVM/SSE 2/2025

Histórico normativo da (i)responsabilidade dos cotistas em FII
Há mais de 30 anos, em 25 de junho de 1993, foi publicada a Lei 8.668, instituindo os Fundos de Investimento Imobiliário (FII), dispondo sobre sua constituição e sobre o regime tributário. Entre outras providências, a Lei reconhece os FII como um condomínio fechado, sujeito à regulação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), distribuição mínima de 95% dos lucros ao cotistas e previsão da estruturação básica do regulamento do fundo. Nesse cenário, destaca-se que a Lei também previu, expressamente, a responsabilidade limitada dos cotistas ao valor das cotas subscritas:
Art. 13. O titular das quotas do Fundo de Investimento Imobiliário:
[…]
II – não responde pessoalmente por qualquer obrigação legal ou contratual, relativamente aos imóveis e empreendimentos integrantes do fundo ou da administradora, salvo quanto à obrigação de pagamento do valor integral das quotas subscritas.
Desde então, nas últimas décadas, pouco se debateu acerca dessa disposição, que, atualmente, tem sido alvo de controvérsias. Eis que, com a edição da Lei 13.874, de 20 de setembro de 2019 (Lei da Liberdade Econômica), previu-se, no art. 1368-D, I, § 1°, do Código Civil, uma possibilidade (aparentemente) oposta: a faculdade da limitação de responsabilidade, de forma que fundos de investimento (sem diferenciar entre FII, FIDC e assim por diante) pudessem ser constituídos com a responsabilidade ilimitada de seus cotistas:
Art. 1.368-D. O regulamento do fundo de investimento poderá, observado o disposto na regulamentação a que se refere o § 2º do art. 1.368-C desta Lei, estabelecer: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
I – a limitação da responsabilidade de cada investidor ao valor de suas cotas; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019);
[…]
- 1º A adoção da responsabilidade limitada por fundo de investimento constituído sem a limitação de responsabilidade somente abrangerá fatos ocorridos após a respectiva mudança em seu regulamento.
Nesse contexto, em 28 de dezembro de 2022 foi publicada a Resolução CVM n° 175 (CVM 175), sendo a regulação balizadora da CVM quanto às regras de constituição, divulgação de informações, funcionamento e prestação de serviços acerca dos fundos de investimento no Brasil. De forma congruente ao posicionamento trazido pela Lei da Liberdade Econômica, a CVM previu, no art. 18 da CVM 175, a possibilidade de que os fundos fossem constituídos com responsabilidade ilimitada dos cotistas em eventual exercício com patrimônio líquido negativo:
Art. 18. O regulamento pode prever que a responsabilidade do cotista é limitada ao valor por ele subscrito.
Parágrafo único. Caso o regulamento não limite a responsabilidade do cotista, os cotistas respondem por eventual patrimônio líquido negativo, sem prejuízo da responsabilidade do prestador de serviço pelos prejuízos que causar quando proceder com dolo ou má-fé.
Assim, enquanto os gestores e administradores buscavam adaptar o regulamento de seus FII à então nova regulação da CVM, fora criada a dúvida e, consequentemente, incerteza e instabilidade no mercado: os FII devem ser constituídos, obrigatoriamente, sobre o regime de responsabilidade limitada dos cotistas (ante a disposição da Lei 8.668) ou os cotistas do FII podem ser responsabilizados pessoalmente, de forma ilimitada em relação ao valor investido, caso se apure patrimônio líquido negativo no exercício (ante o novo dispositivo do Código Civil e a CVM 175)?
O Ofício-Circular nº 2/2025/CVM/SSE e o entendimento da CVM
Neste contexto, a Superintendência de Securitização e Agronegócio (SSE) da CVM, em 18 de março de 2025, publicou o Ofício-Circular nº 2/2025/CVM/SSE (Ofício) com o objetivo orientar os administradores e gestores sobre a aparente contradição normativa no que toca a responsabilidade dos cotistas de FII, à luz do disposto no art. 13, II, da Lei nº 8.668 e do art. 18 da CVM 175.
Conforme pode-se extrair do Ofício, a CVM apresentou o entendimento de que as duas disposições não são contraditórias ou adversativas e devem ser interpretadas de forma complementar. Mas, como isso é possível?
É simples: o art. 13, II, da Lei 8.668 é claro ao prever a responsabilidade limitada quanto aos imóveis do fundo ou da administradora e os empreendimentos imobiliários investidos, enquanto o art. 40 do anexo normativo III da CVM 175 elenca, taxativamente, quais ativos são compreendidos como ativos imobiliários (letras imobiliárias garantidas, letras de crédito imobiliário, notas comerciais, ações ou quotas sociais etc.).
Logo, é possível que a responsabilidade dos cotistas seja limitada quanto aos imóveis e empreendimentos imobiliários operados pelo FII e, ao mesmo tempo, o cotista seja responsabilizado pessoalmente, de forma ilimitada ao valor investido, por outras obrigações que não estejam compreendidas nessas taxativamente citadas. É o caso, por exemplo, de obrigações contratuais ou legais do FII com um de seus prestadores de serviço ou até a própria administradora.
Nesse caso, na hipótese de dívida existente com a administradora tamanha a ponto de resultar em um patrimônio líquido negativo no exercício, não há conflito na legislação capaz de impedir os cotistas de serem chamados a aportar novos recursos, desde que previsto no regulamento do FII a responsabilidade ilimitada.
Nesse sentido, de acordo com entendimento da CVM, é imperativo que, para obrigar os cotistas ao aporte de recursos além dos já investidos, esteja detalhado no regulamento que tal responsabilidade recai unicamente nas situações em que ocorra patrimônio líquido negativo em decorrência de obrigações legais ou contratuais não relativas aos ativos do FII (imóveis ou empreendimentos imobiliários qualificados no art. 40 do Anexo Normativo III à CVM 175).
Dessa forma, conforme assevera a SSE, não é admitida cláusula meramente genérica de responsabilidade ilimitada dos cotistas e os FII que previam responsabilização ilimitada indefinida de seus cotistas devem adaptar seus regulamentos para atender à diretriz recém estabelecida pela CVM.
Conclusão
Em suma, a recente manifestação da CVM por meio do Ofício-Circular CVM/SSE 2/2025 representa um avanço interpretativo relevante para o mercado de Fundos de Investimento Imobiliário, ao esclarecer a coexistência das disposições da Lei nº 8.668/1993 e da Resolução CVM 175.
A delimitação entre as obrigações relacionadas aos ativos imobiliários do fundo — nas quais a responsabilidade dos cotistas permanece limitada ao valor das cotas — e aquelas de natureza contratual ou legal não diretamente vinculadas aos ativos, nas quais pode haver responsabilização adicional, confere maior segurança jurídica a administradores, gestores e investidores.
Ainda, cabe aos gestores e administradores adaptarem o regulamento do fundo, conforme o caso, caso desejem prever a responsabilidade ilimitada nos termos já apresentados, prevendo cláusula específica de aportes adicionais caso o patrimônio líquido do fundo se torne negativo no exercício em razão de obrigações contratuais e legais não relacionadas aos ativos e empreendimentos imobiliários do FII.
Importante lembrar que o Ofício publicado possui caráter meramente interpretativo, sem força normativa, refletindo o entendimento da autarquia quanto à controvérsia analisada. O Ofício reforça a importância da transparência regulatória, da diligência na redação dos documentos constitutivos a fim de possibilitar, por parte dos investidores, uma análise criteriosa das condições de responsabilização previstas nos regulamentos dos fundos.