Valor Mobiliário no Direito Brasileiro: Da Construção Normativa às Perspectivas de Expansão

A definição jurídica de valor mobiliário desempenha um papel central na estruturação e regulação do mercado de capitais. No Brasil, o legislador seguiu a tendência observada em diversos sistemas legislativos estrangeiros, adotando modelos institucionais que preveem a criação de órgãos reguladores especializados – como é o caso da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) no Brasil – e a edição de normas legais específicas voltadas ao setor. Nesse contexto, o enquadramento de determinados instrumentos como valores mobiliários não apenas submete esses ativos à disciplina normativa própria, mas também os sujeita à fiscalização da autoridade competente1.
O conceito de valor mobiliário não surgiu de forma acabada no ordenamento jurídico brasileiro. Ao contrário, foi sendo progressivamente construído a partir de influências doutrinárias e legislativas internacionais, refletindo debates travados por estudiosos e reguladores ao redor do mundo. Tradicionalmente, é possível identificar dois sistemas principais de conceituação adotados por diferentes países. De um lado, sistemas como o dos Estados Unidos optaram por uma definição ampla, baseada em critérios funcionais e econômicos. De outro, países como França e Portugal seguiram uma abordagem mais restrita, limitando o conceito aos instrumentos expressamente previstos em lei2.
No Brasil, a expressão “valor mobiliário” foi mencionada pela primeira vez em 1965, com a promulgação da Lei nº 4.728, em 14 de julho. Essa norma teve como objetivo disciplinar os mercados financeiro e de capitais e estabelecer mecanismos para o seu desenvolvimento, conferindo ao Conselho Monetário Nacional (CMN) a competência de disciplinar sobre esses mercados, e ao Banco Central da República do Brasil a função de fiscalização. Apesar de conter diversos dispositivos sobre valores mobiliários e mencionar instrumentos que poderiam ser assim classificados, a Lei nº 4.728/65 não se preocupou em apresentar uma definição jurídica do termo, deixando uma lacuna conceitual relevante no ordenamento.
Inicialmente, essa lacuna conceitual não gerou grandes obstáculos, dado que o mercado de capitais brasileiro ainda apresentava um volume reduzido de instrumentos ofertados. Contudo, a partir de 1969, inicia-se um crescimento significativo desse mercado, o que exigiu avanços regulatórios mais estruturados. Esse movimento culminou, em 1976, na criação da CVM, por meio da Lei nº 6.3853. Além de instituir o órgão regulador, esta legislação foi responsável por apresentar, em seu art. 2º, a primeira definição normativa de valores mobiliários no Brasil, adotando um sistema mais restritivo de conceituação. O dispositivo elencou exemplificativamente os instrumentos classificados como valores mobiliários e conferiu ao CMN a competência para ampliar esse rol:
“Art. 2º São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei:
I – as ações, partes beneficiárias e debêntures, os cupões desses títulos e os bônus de subscrição;
II – os certificados de depósito de valores mobiliários;
III – outros títulos criados ou emitidos pelas sociedades anônimas, a critério do Conselho Monetário Nacional.”
Com a expansão do mercado de capitais brasileiro nas décadas seguintes, o rol exemplificativo previsto na Lei nº 6.385/76 revelou-se insuficiente para acompanhar a crescente diversidade de instrumentos. Diante dessa limitação, foi editada a Medida Provisória nº 1.637, em 1998, posteriormente convertida na Lei nº 10.198/2001, que representou um novo marco na evolução do conceito de valores mobiliários no país. A nova legislação alterou o sistema de conceituação adotado até então, adotando uma conceituação mais ampla e flexível, inspirada no modelo estadunidense e na noção de “security”. Assim, os valores mobiliários passaram a ser conceituados da seguinte forma:
“Art. 1o Constituem valores mobiliários, sujeitos ao regime da Lei no 6.385, de 7 de dezembro de 1976, quando ofertados publicamente, os títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.”
Alguns meses após a promulgação da Lei nº 10.198/2001, e em complementação às reformas legislativas promovidas no tema das sociedades por ações, a Lei nº 6.385/76, que ainda estava vigente, foi modificada, pela Lei nº 10.303/2001. Essa modificação não só atualizou e sistematizou o rol exemplificativo de valores mobiliários, incorporando novos instrumentos ao elenco do já mencionado art. 2º, como também consolidou a mudança de paradigma iniciada pela Medida Provisória nº 1.637/98. Manteve-se, assim, a concepção ampliada de valores mobiliários, permitindo a inclusão de contratos e operações que, embora não expressamente previstos, atendam aos critérios legais estabelecidos. Portanto, o resultado foi a adoção, pelo ordenamento jurídico brasileiro, de um sistema híbrido, que combina elementos do modelo restritivo europeu com a abordagem funcional estadunidense. A nova redação do art. 2º da Lei nº 6.385/76, ainda vigente, passou a definir os valores mobiliários nos seguintes termos:
“Art. 2º São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei:
I – as ações, debêntures e bônus de subscrição;
II – os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II;
III – os certificados de depósito de valores mobiliários;
IV – as cédulas de debêntures;
V – as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos;
VI – as notas comerciais;
VII – os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários;
VIII – outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes; e
IX – quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.”
Diante do exposto, nota-se que a construção do conceito jurídico de valor mobiliário no Brasil refletiu uma evolução gradual, influenciada tanto por demandas internas quanto por modelos estrangeiros. A transição de um sistema de conceituação restrito para uma abordagem híbrida evidenciou a necessidade de adaptar o marco normativo à crescente sofisticação do mercado de capitais, cuja dinâmica exige constantes revisões e atualizações legislativas. Essa evolução normativa, embora significativa, não encerra o debate. Ao contrário, ela inaugura novas discussões sobre os limites e possibilidades de expansão do conceito de valor mobiliário diante das transformações em curso no mercado.
Dessa forma, diversos estudiosos e agentes do mercado de capitais têm proposto novas perspectivas sobre os contornos do conceito de valor mobiliário e sobre quais instrumentos devem ser por ele abarcados. Importante destacar, contudo, que eventuais mudanças de entendimento não dependem, necessariamente, de alterações legislativas. Isso porque, em razão da redação ampla conferida pelo inciso IX do art. 2º, da Lei nº 6.385/76, a CVM dispõe de margem interpretativa suficiente para enquadrar novos instrumentos como valores mobiliários.
Por meio do Parecer de Orientação CVM nº 40, de 11 de outubro de 2022, a CVM informou que vem utilizando o “Teste de Howey”, para avaliar se determinado ativo é valor mobiliário. O Teste de Howey é uma forma de classificar um instrumento como valor mobiliário por meio da verificação de apenas 6 características:
“(i) Investimento: aporte em dinheiro ou bem suscetível de avaliação econômica;
(ii) Formalização: título ou contrato que resulta da relação entre investidor e ofertante, independentemente de sua natureza jurídica ou forma específica;
(iii) Caráter coletivo de investimento;
(iv) Expectativa de benefício econômico: seja por direito a alguma forma de participação, parceria ou remuneração, decorrente do sucesso da atividade referida no item (v) a seguir;
(v) Esforço de empreendedor ou de terceiros: benefício econômico resulta da atuação preponderante de terceiro que não o investidor; e
(vi) Oferta pública: esforço de captação de recursos junto à poupança popular.
Os 3 (três) últimos requisitos merecem detalhamento quando analisamos criptoativos.”
Com o amadurecimento das discussões acerca da necessidade de atualização do conceito de valor mobiliário, o tema passou também a ser objeto de proposições legislativas recentes. Dentre elas, destacam-se os Projetos de Leis nº 2.060/2019 e nº 182/2024, que evidenciam tentativas de modernização do arcabouço normativo à luz de novas dinâmicas do mercado.
O Projeto de Lei nº 2.060/2019, de autoria do deputado federal Aureo Ribeiro (Solidariedade), tinha como objetivo estabelecer o regime jurídico dos criptoativos. No âmbito dessa proposta, buscava-se incluir no rol exemplificativo do art. 2º, da Lei nº 6.385/76, os “criptoativos, ainda que tenham os seus valores correspondentes ao valor de cotas de pessoas jurídicas”. Apesar de sinalizar uma abertura para o enquadramento de criptoativos como valores mobiliários, o projeto acabou sendo arquivado.
Por sua vez, o Projeto de Lei nº 182/2024, apresentado pelo deputado federal Jaime Martins (PSD), ganhou novo impulso a partir do substitutivo aprovado no Senado Federal, resultando na promulgação da Lei nº 15.042, em 11 de dezembro de 2024. A nova norma institui o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE) e promoveu alteração direta no art. 2º da Lei nº 6.385/76, acrescentando o inciso X. Esse dispositivo passou a incluir, expressamente, como valores mobiliários os ativos integrantes do SBCE e os créditos de carbono, quando negociados nos mercados financeiros e de capitais.
Essas iniciativas legislativas demonstram um movimento que busca atualizar o conceito de valor mobiliário no Brasil, direcionado a abarcar novas realidades econômicas. Nota-se um esforço de expansão conceitual em duas frentes emergentes: de um lado, os ativos vinculados a políticas de sustentabilidade e ESG (Environmental, Social and Governance); e de outro, os criptoativos e tokens. Em ambos os casos, as propostas não rompem com os instrumentos tradicionais já consolidados, mas buscam ampliar o alcance normativo para refletir as transformações do mercado de capitais contemporâneo.