Portabilidade de Investimentos em Valores Mobiliários: Avanços Regulatórios, Desdobramentos Práticos e Impactos para Instituições Financeiras

Introdução
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), no contexto de sua agenda de fortalecimento da infraestrutura do mercado de capitais, introduziu um novo marco regulatório para a portabilidade de investimentos por meio das Resoluções CVM nº 209 e 210, publicadas em agosto de 2024. Em maio de 2025, a CVM publicou a Resolução CVM nº 229, que alterou pontualmente os dispositivos anteriores e prorrogou a entrada em vigor do regime para 2 de janeiro de 2026.
A regulamentação representa um passo estratégico na direção de maior competitividade e transparência no sistema financeiro brasileiro. A portabilidade, nesse escopo, é definida como a transferência de valores mobiliários e de eventuais direitos e ônus a eles atribuídos, entre instituições financeiras, sem alteração de titularidade.
- Histórico Regulatório da Portabilidade no Brasil
Embora o termo “portabilidade” esteja amplamente associado ao setor bancário, sobretudo no que diz respeito a crédito consignado e planos de previdência, a discussão sobre sua aplicação aos investimentos em valores mobiliários ganhou relevância apenas nos últimos anos, à medida que a digitalização do mercado e o crescimento do número de investidores pessoas físicas exigiram maior flexibilidade nas movimentações de ativos.
Antes da edição das Resoluções CVM nº 209 e 210, não havia um marco regulatório específico que disciplinasse de forma padronizada o processo de transferência de ativos entre plataformas e instituições intermediárias. As operações de transferência ocorriam de forma fragmentada, com diferentes prazos, procedimentos e níveis de transparência. Isso criava entraves operacionais, desincentivava a livre concorrência e, principalmente, colocava o investidor em posição de desvantagem informacional.
A partir de 2022, a CVM iniciou estudos internos e promoveu consultas públicas para tratar da padronização desses processos. A Consulta Pública SDM nº 08/2023 colheu contribuições valiosas de instituições financeiras, associações de classe e especialistas do setor. O resultado foi a formulação de uma regulação que tem como pilares a padronização, a transparência, a agilidade e a proteção do investidor.
- Comparações Internacionais: O que o Brasil pode aprender?
O modelo brasileiro de portabilidade de investimentos apresenta semelhanças com iniciativas regulatórias implementadas em mercados mais maduros, como Estados Unidos, Reino Unido e Austrália.
Nos EUA, por exemplo, a Financial Industry Regulatory Authority (FINRA) estabelece regras claras sobre a transferência de contas de corretoras por meio do sistema Automated Customer Account Transfer Service (ACATS). O processo é digital, padronizado e deve ser concluído em até seis dias úteis. O investidor pode iniciar a transferência online, com transparência sobre prazos, taxas e ativos passíveis de movimentação.
No Reino Unido, a Financial Conduct Authority (FCA) também promoveu a interoperabilidade entre plataformas de investimento. O foco está em mitigar o fenômeno conhecido como “investor lock-in”, no qual o investidor permanece com determinada instituição não por qualidade, mas pela complexidade de migrar seus ativos.
A Austrália, por sua vez, avança com a implementação de sistemas integrados para movimentação de ativos no contexto de contas de aposentadoria (superannuation), o que mostra que o conceito de portabilidade é aplicável mesmo em ambientes de custódia diferenciada.
No contexto latino-americano, o Brasil assume a vanguarda com a criação de uma regulação ampla e detalhada sobre portabilidade de valores mobiliários, o que poderá, futuramente, ser um case de referência para mercados emergentes.
- Impactos Concorrenciais: Transformação do Ecossistema de Intermediação
A entrada em vigor das novas regras deverá intensificar a competição entre corretoras, bancos e plataformas de investimento. O aumento da mobilidade dos investidores tende a quebrar barreiras de fidelização artificial, exigindo maior eficiência, inovação tecnológica e atendimento qualificado das instituições para retenção de clientes.
De acordo com a ANBIMA, mais de 5 milhões de contas de investimento estão atreladas a plataformas digitais atualmente. Com a padronização da portabilidade, espera-se uma elevação no número de solicitações de transferência, sobretudo por investidores insatisfeitos com taxas, atendimento ou rentabilidade dos produtos oferecidos.
A tendência é que o diferencial competitivo passe a ser mais profundamente associado à qualidade da experiência do usuário, à educação financeira e à transparência. Instituições que apresentarem sistemas eficientes para atender pedidos de portabilidade, sem resistência operacional ou comercial, terão vantagem reputacional no novo cenário.
Por outro lado, os custos operacionais com a adaptação de sistemas e treinamento de equipes poderão impactar instituições menores, exigindo atenção ao equilíbrio entre conformidade e viabilidade econômica.
- Visão de Associações de Classe e do Mercado
A regulamentação recebeu apoio de importantes entidades do setor, como ANBIMA e B3. Em manifestações públicas, ambas reconheceram os avanços trazidos pela padronização e a importância da nova regulação para o amadurecimento do mercado.
A ANBIMA, em especial, destacou a relevância da interface digital obrigatória para democratizar o acesso e simplificar o processo de solicitação de portabilidade, apontando que isso oferece “transparência, segurança e clareza para o investidor final”.
A B3, como principal infraestrutura do mercado de capitais brasileiro, terá papel fundamental na operacionalização das transferências, atuando na interligação entre custodiante, depositário central e intermediários. O sucesso do regime regulatório dependerá, em larga medida, da estabilidade e eficiência tecnológica da B3 e das plataformas integradas ao seu ecossistema.
- Impacto no Investidor Pessoa Física e Pessoa Jurídica
A portabilidade traz benefícios concretos tanto para o investidor pessoa física quanto para o investidor institucional.
No caso do investidor pessoa física, o principal ganho está na redução de barreiras operacionais para movimentação de ativos entre corretoras, favorecendo a liberdade de escolha, a concorrência e o alinhamento da carteira de investimentos aos seus objetivos financeiros. Investidores com maior maturidade financeira tendem a se beneficiar mais, pela capacidade de avaliar custos e rentabilidades em diferentes instituições.
Já no caso de investidores institucionais – como fundos, seguradoras e family offices – a portabilidade facilita a reorganização estratégica de ativos, seja por reestruturação de portfólio, seja por busca de custos operacionais mais eficientes. A medida também favorece operações de fusões e aquisições, uma vez que simplifica o redesenho de carteiras integradas.
Por outro lado, tanto pessoas físicas quanto jurídicas devem estar atentas às condições contratuais de produtos específicos, como ativos ilíquidos ou vinculados a garantias, que podem limitar a portabilidade de forma legítima.
- Obrigações dos Agentes de Mercado
Com a entrada em vigor do novo marco regulatório, diversos agentes do mercado de capitais brasileiro terão obrigações específicas em relação à portabilidade. O cumprimento eficiente dessas normas será essencial para garantir a fluidez do processo e a integridade do sistema como um todo. Abaixo, destacamos os principais papéis:
a) Intermediários de Valores Mobiliários (corretoras e distribuidoras)
As instituições intermediárias são os principais pontos de contato com os investidores. Segundo a Resolução CVM 209, cabe a elas:
- Implementar sistemas digitais que permitam a solicitação de portabilidade por meio de interfaces eletrônicas;
- Estabelecer canais de atendimento ágeis e transparentes para acompanhamento do processo;
- Garantir a segurança e autenticidade das solicitações recebidas;
- Fornecer informações prévias ao investidor sobre os custos envolvidos, prazos estimados e eventuais limitações contratuais.
Além disso, a Resolução prevê que não pode haver “obstáculos indevidos” à portabilidade — o que significa que tentativas de retenção artificial do cliente, ou exigência de documentos excessivos, poderão ser interpretadas como infrações à norma.
b) Administradores Fiduciários
Os administradores fiduciários de fundos de investimento terão a responsabilidade de cooperar com o processo de portabilidade nos casos em que os ativos estejam registrados sob custódia coletiva ou em estruturas que envolvam múltiplos intermediários. Devem:
- Fornecer informações claras sobre a viabilidade técnica da portabilidade dos ativos do fundo;
- Identificar restrições regulatórias ou contratuais que eventualmente impeçam a movimentação;
- Atuar de forma neutra em relação às instituições envolvidas.
c) Custodiantes e Depositários Centrais
Instituições como a B3, que atuam como depositário central, serão peças-chave na efetivação da movimentação dos ativos. Caberá a elas:
- Manter sistemas de registro compatíveis com as solicitações de portabilidade;
- Garantir que as ordens sejam processadas dentro dos prazos estabelecidos;
- Fornecer relatórios para fins de fiscalização e controle pela CVM e demais órgãos reguladores.
d) Gestores de Recursos
Ainda que não estejam diretamente envolvidos na operacionalização, os gestores de recursos devem orientar seus clientes institucionais quanto aos impactos da portabilidade sobre os mandatos de gestão, condições contratuais e alocações estratégicas. A atenção especial recai sobre:
- Cláusulas de lock-up;
- Participações em ativos restritos ou estruturados;
- Condições de precificação em caso de transferência de posições ilíquidas.
Desafios de Implementação
Apesar de seus méritos regulatórios, a operacionalização da portabilidade de investimentos impõe desafios técnicos e jurídicos relevantes para as instituições do mercado. Entre os principais pontos críticos, destacam-se:
a) Adaptação de Sistemas e Processos
A exigência de canais digitais para recebimento e acompanhamento da portabilidade implica a reformulação de plataformas já em operação. Instituições que não possuem estruturas tecnológicas robustas precisarão realizar investimentos significativos, inclusive para garantir a interoperabilidade com outros participantes do mercado.
A experiência do setor bancário com a portabilidade de crédito pode servir de referência, mas o mercado de capitais possui maior complexidade, especialmente no tocante à diversidade de ativos e estruturas de custódia.
b) Definição de prazos padronizados
Ainda que a regulamentação preveja a possibilidade de portabilidade, a ausência de prazos máximos estabelecidos na norma (salvo em alguns casos específicos) pode gerar inconsistências operacionais. A definição de prazos excessivamente longos por algumas instituições pode, na prática, desestimular o investidor e comprometer o objetivo concorrencial da regulação.
A CVM indicou que acompanhará esse ponto por meio da supervisão baseada em risco e poderá editar normativos complementares ou orientações se houver abusos.
c) Ativos com restrições de transferibilidade
Diversos ativos negociados no mercado de capitais — como debêntures com cláusulas específicas, cotas de fundos fechados ou instrumentos estruturados — apresentam restrições à transferência. A norma reconhece que a portabilidade poderá ser inviabilizada nesses casos, desde que haja justificativa técnica, jurídica ou contratual adequada.
Esse ponto exige atenção redobrada das áreas jurídicas e de compliance das instituições, tanto para evitar negativas indevidas quanto para garantir a integridade das limitações legítimas.
d) Comunicação com o investidor
Instituições financeiras deverão adotar estratégias eficazes de comunicação para evitar litígios ou insatisfações relacionadas ao processo de portabilidade. Isso envolve:
- Clareza quanto a prazos e condições;
- Relatórios e avisos de andamento;
- Disponibilização de canais de atendimento especializados.
A ausência de transparência nesse aspecto pode resultar em sanções pela CVM, inclusive sob o prisma do dever de boa-fé e da proteção do investidor.
Conclusão: O Caminho para um Mercado Mais Competitivo e Transparente
A implementação da portabilidade de investimentos no Brasil, conforme disciplinada pelas Resoluções CVM nº 209, 210 e 229, constitui um marco regulatório relevante, alinhado às melhores práticas internacionais. Seu sucesso, no entanto, dependerá do engajamento de todos os participantes do mercado.
Ao proporcionar maior mobilidade, padronização e transparência, o novo regime fortalece os pilares concorrenciais do setor e amplia o poder de escolha dos investidores. Instituições que se anteciparem aos desafios operacionais e souberem integrar a regulação à sua estratégia de relacionamento com o cliente poderão se posicionar como protagonistas em um ambiente cada vez mais dinâmico e orientado pela eficiência.
A extensão do prazo de entrada em vigor para janeiro de 2026, promovida pela Resolução CVM nº 229, representa uma oportunidade valiosa para ajustes operacionais e estratégicos. Trata-se de um momento propício para o mercado revisar seus procedimentos, reforçar suas estruturas tecnológicas e consolidar uma abordagem mais centrada no investidor.