A Necessidade de Auditoria Financeira Independente em Operações de Securitização Concentrada: A Interpretação do Colegiado da CVM 

João Vitor C. C. Ohara
João Vitor C. C. Ohara

As operações de securitização consistem na aquisição de direitos creditórios, a serem utilizados como lastro para a emissão de títulos de securitização — como os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI), do Agronegócio (CRA) e outros certificados de recebíveis. O pagamento desses títulos depende, em última instância, do recebimento dos recursos oriundos dos direitos creditórios adquiridos. 

Nesse processo, dois agentes se destacam: as companhias securitizadoras, responsáveis por adquirir os direitos creditórios e emitir os títulos, e os devedores principais dos créditos adquiridos, que integram o lastro da operação. Em estruturas mais complexas, é comum a participação de codevedores — pessoas físicas ou jurídicas que atuam como fiadores ou avalistas, garantindo solidariamente o pagamento dos direitos creditórios. 

Quando tais títulos são ofertados publicamente, a operação se submete à regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), especialmente à Resolução CVM nº 60/2021. O art. 43-A dessa norma estabelece que, como regra, os títulos de securitização não podem ter sua exposição concentrada em um único devedor ou coobrigado em mais de 20% do valor da emissão. Assim, por exemplo, em uma oferta de CRI no valor de R$ 100 milhões, a exposição máxima a um mesmo devedor ou coobrigado seria de R$ 20 milhões. 

O mesmo dispositivo, contudo, prevê que a limitação de concentração não se aplica quando o devedor ou coobrigado for: (i) companhia aberta; (ii) instituição financeira; ou (iii) entidade cujas demonstrações financeiras relativas ao exercício social imediatamente anterior à data da emissão tenham sido auditadas por auditor independente registrado na CVM. 

Tradicionalmente, o mercado interpretava essa exceção de forma extensiva: a dispensa da regra de concentração somente se aplicaria se tanto o devedor quanto os codevedores pessoas jurídicas apresentassem cumulativamente demonstrações financeiras auditadas. Já os codevedores pessoas físicas, por não elaborarem demonstrações financeiras, estariam automaticamente sujeitos ao limite de 20%. 

Contudo, essa interpretação foi recentemente revisitada pelo Colegiado da CVM, em resposta à consulta formulada pela ANBIMA (Proc. 19957.019375/2024-58). De forma unânime, o Colegiado adotou uma leitura mais flexível do art. 43-A, conforme os seguintes pontos principais: 

(i)    A exceção ao limite de concentração se aplica quando o devedor ou o coobrigado (não necessariamente ambos) apresentar demonstrações financeiras auditadas; 

(ii)   Caso ambos (devedor e coobrigado) tenham exposição superior a 20% da emissão e possuam demonstrações auditadas, as duas devem ser apresentadas; 

(iii)   Pessoas físicas podem figurar como devedores ou coobrigados com exposição superior a 20%, desde que a outra parte envolvida (devedor ou coobrigado) atenda ao requisito de demonstrações auditadas; 

(iv)   Não há exigência retroativa de auditoria quando o desenquadramento do limite de 20% decorrer de evento superveniente, ou seja, posterior à emissão; 

(v)   A companhia securitizadora deve sempre fornecer aos investidores informações suficientes para a adequada avaliação do risco de crédito, incluindo os riscos associados à ausência de demonstrações auditadas; 

(vi)   Tais fatores de risco devem ser destacados no prospecto da oferta, principalmente no caso de devedores ou coobrigados pessoas físicas, alertando para a eventual falta de elementos objetivos de análise de risco. 

A nova interpretação do Colegiado da CVM representa um avanço relevante para a flexibilização das estruturas de securitização, especialmente em um cenário de concentração de risco em determinados ativos ou garantias. Ao permitir que a apresentação das demonstrações financeiras auditadas se limite a apenas uma das partes com exposição relevante — seja o devedor ou o coobrigado —, a CVM reduz entraves operacionais. 

O desafio que se impõe, agora, é assegurar que essa flexibilização venha acompanhada de mecanismos robustos de divulgação de riscos, para que os participantes do mercado possam tomar decisões informadas, sobretudo diante da presença de garantidores pessoas físicas ou de estruturas complexas com menor transparência informacional. O equilíbrio entre acesso ao mercado e dever de disclosure permanece como o eixo central da regulamentação das securitizações. 

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