O REGIME DA HABITAÇÃO SOCIAL EM SÃO PAULO: ANÁLISE DO DECRETO Nº 64.244/2025 E SEUS IMPACTOS NA DESTINAÇÃO DOS IMÓVEIS HIS E HMP

INTRODUÇÃO
Em 29 de maio de 2025, a Prefeitura do Município de São Paulo publicou o Decreto nº 64.244 que visa aprofundar e endurecer as regras existente aplicáveis a empreendimentos de Habitação de Interesse Social (“HIS”) e Habitação de Mercado Popular (“HMP”), alterando substancialmente o Decreto nº 63.130/2024 que até então regulamentava o artigo 47 da Lei municipal nº 16.050/2014, conhecido como Plano Diretor Estratégico do município de São Paulo (“PDE”).
A medida reflete mais uma tentativa do poder público em coibir práticas fraudulentas e assegurar que as unidades habitacionais, que se beneficiam de incentivos urbanísticos e fiscais do PDE, sejam efetivamente destinadas às famílias de baixa renda para as quais foram originalmente concebidas.
As implicações deste decreto são vastas e impactam de forma relevante incorporadoras, investidores, adquirentes e demais agentes do mercado imobiliário. Abaixo trataremos do tema objetivamente com intuito de (i) apresentar o conceito de HIS e HMP, (ii) a evolução legislativa sobre a fiscalização da destinação dos imóveis e (iii) as principais mudanças promovidas pelo Decreto nº 64.244.
PDE: O CONCEITO DE HIS E HMPO PDE, conforme criado pela Lei municipal nº 16.050, de 31 de julho de 2014, constitui a base legal para a política urbana da cidade de São Paulo, sendo que os artigos 46 e 47 da Lei instituem um regime jurídico especial, por meio da fruição de benefícios fiscais e urbanísticos, aos imóveis classificados como HIS e HMP.
Os imóveis HIS dividem-se em HIS 1, destinados a pessoas com renda familiar de até 3 (três) salários-mínimos mensais ou até 0,5 (meio) salário-mínimo per capita mensal, e HIS 2, destinados a pessoas com até 6 (seis) salários-mínimos de renda familiar mensal ou até 1 (um) salário-mínimo per capita mensal. Já os imóveis HMP são destinados a pessoas com até 10 (dez) salários-mínimos de renda familiar mensal ou até 1,5 (um e meio) salário-mínimo per capita mensal.
A partir da concessão de benefícios fiscais e urbanísticos, a norma visa, portanto, tornar o setor imobiliário acessível a famílias de baixa renda, conforme as faixas de renda do HIS e HMP.
DESTINAÇÃO E FISCALIZAÇÃO: EVOLUÇÃO NORMATIVA
O PDE prevê sanções para o descumprimento das normas de destinação das unidades habitacionais, sendo responsabilizado tanto o promotor do empreendimento – o qual deve pagar o integral do potencial construtivo adicional utilizado, impostos, custas e demais encargos referentes à sua implantação, além de multa equivalente ao dobro deste valor financeiro apurado, devidamente corrigido -, bem como os terceiros adquirentes – que deverão pagar os valores imputados ao promotor de forma proporcional à fração ideal do imóvel adquirido.
Não obstante a previsão normativa, as medidas sancionatórias foram circundadas por parte de agentes do mercado imobiliário, que passaram a explorar lacunas legislativas e a ausência de um procedimento fiscalizatório robusto, oferecendo imóveis mais baratos para o público não destinado e beneficiado pelo regime do HIS e HMP.
Em virtude disso, a primeira tentativa de o poder público endurecer as regras do PDE surgiu com a publicação do Decreto nº 63.130/2024, que construiu importantes definições e mecanismos de controle para destinação das unidades imobiliárias. Dentre as quais, destacam-se: (i) acarretar a responsabilidade pela emissão e veracidade da certidão de renda para o promotor ou locador; (ii) condicionar a emissão do Habite-se à averbação da destinação das unidades na matrícula do imóvel; (iii) estabelecer a responsabilidade de todos os elos da cadeia – proprietário, possuidor, adquirente-locador, adquirente-final e locatário – pela correta destinação das unidades imobiliárias.
Entretanto, mesmo assim tal endurecimento não foi não se mostrou suficientemente eficaz na prática para conter as irregularidades na destinação das unidades imobiliárias, sendo editado o Decreto nº 64.244/2025, aprofunda e reforça os mecanismos de controle e fiscalização já existentes.
DESTAQUES E APROFUNDAMENTOS DO NOVO DECRETO Nº 64.244/2025
Dentre as principais mudanças trazidas pelo Decreto nº 64.244/2025, podemos destacar: (i) a definição de renda familiar, que passa a seguir o disposto na Lei Federal nº 13.983/2020, o que inclui no cálculo de renda os membros da família sem sustento próprio; (ii) a responsabilidade pela veracidade e comprovação da renda familiar por meio da emissão da certidão de renda, bem como pela guarda, passa a ser atribuída ao promotor do empreendimento ou ao locador, inclusive no que tange acerca do consentimento e guarda documental, nos termos da LGPD; (iii) a ampliação da responsabilidade pela correta destinação do imóvel ao proprietário, possuidor, adquirente-locado, adquirente-final e o locatário; (v)a limitação do valor do aluguel para alocações em 30% da renda da faixa correspondente; (vi) a proibição da realização de cessões em comodato ou locações temporárias, como as realizadas pelo aplicativo Airbnb, por exemplo; (vii) a sujeição dos imóveis desocupados à fiscalização para efetivo cumprimento da destinação social; e (viii) a identificação ostensiva nos matérias promocionais e publicitários acerca das unidades HIS e HMP.
IMPACTOS PARA O MERCADO IMOBILIÁRIO E AGENTES ENVOLVIDOS
Com o aprofundamento e reforço dos mecanismos de controle e fiscalização do PDE acerca da destinação dos imóveis HIS e HMP, proveniente do Decreto 64.404/25, as incorporadoras e construtoras enfrentarão maior burocracia para venda das unidades imobiliárias destinadas a famílias de baixa renda, dificultando a destinação incorreta.
Pelo lado dos investidores e adquirentes, destaca-se o caráter permanente da destinação social do imóvel HIS/HMP, visto que agora passam a integrar a cadeia de responsabilidade da destinação correta dos imóveis. Inclusive, as regras passam a valer não apenas à primeira venda, mas também a imóveis já existentes e a transações subsequentes, ou seja, em tese a destinação irregular após a primeira venda pode desencadear procedimentos administrativos e sanções conforme previsas em lei.
Nesse sentido, especialmente destaca-se a limitação da possibilidade de locações temporárias, haja vista ser essa atividade mais comum de investidores relevantes no setor dava a seus imóveis, rentabilizando-se por plataformas. A restrição desse tipo de uso retira boa parte da atratividade das incorporadoras no desenvolvimento desses projetos por aumento relevante na possibilidade de escoamento das unidades a venda, bem como no próprio risco de crédito dos potenciais compradores.
CONCLUSÃO
A edição do Decreto nº 64.244/2025 representa um avanço significativo na política urbana do Município de São Paulo, ao reforçar e sistematizar os mecanismos de fiscalização e responsabilização quanto à correta destinação dos imóveis classificados como HIS e HMP. A ampliação da cadeia de responsáveis e o endurecimento das exigências documentais sinalizam uma postura mais incisiva do poder público frente às distorções observadas no mercado imobiliário.
Contudo, ainda é cedo para aferir a efetividade concreta do novo marco regulatório. A eficácia das medidas dependerá da capacidade de implementação e fiscalização por parte da administração pública, especialmente no acompanhamento contínuo da destinação social dos imóveis ao longo do tempo, inclusive em revendas e locações.
Além disso, é plausível que a imposição de novos limites e responsabilidades legais impacte o valor de mercado de unidades HIS e HMP adquiridas por investidores, sobretudo diante da impossibilidade de locações temporárias e da limitação de aluguel a 30% da renda familiar. Tais restrições podem reduzir a atratividade econômica desses ativos para o mercado secundário, com potencial desvalorização dos imóveis e reconfiguração das estratégias de investimento em empreendimentos habitacionais de interesse social.