Abuso de poder e Governança Corporativa: Lições do caso Kawhi – L.A. Clippers
Recentemente, a NBA (liga de basquete estadunidense) passou a enfrentar denúncias de um escândalo envolvendo um de seus times mais valiosos e uma de suas principais estrelas. Kawhi Leonard, camisa nº 2 do Los Angeles Clippers, e Steve Ballmer, ex-presidente executivo da Microsoft e atual acionista majoritário da franquia, tornaram-se protagonistas de um caso paradigmático de governança corporativa, que expõe a fragilidade dos mecanismos de controle e fiscalização no âmbito da liga.
O esquema teria se estruturado por meio da utilização de uma terceira empresa, a Aspiration, como veículo para contornar as rígidas regras de teto salarial da NBA. Para além do impacto esportivo, o episódio fornece um exemplo instigante para análise de conceitos centrais do direito societário, como o alcance do poder de controle, os deveres fiduciários do acionista controlador e os riscos inerentes às transações com partes relacionadas. A partir desse caso, é possível extrair lições relevantes não apenas para o campo do esporte profissional, mas também para a governança de companhias em geral.
Entendendo o Escândalo em Questão
Para compreender a motivação do suposto esquema, é necessário contextualizar o funcionamento da liga. Diferentemente de outros campeonatos profissionais, a NBA organiza-se como uma associação fechada de trinta franquias, controladas por investidores privados. Essas franquias coexistem em um regime de cooperação e competição, sustentado por um conjunto rigoroso de normas cujo objetivo central é preservar o equilíbrio competitivo entre os times. Dentre essas normas, destaca-se o teto salarial, mecanismo que limita o montante que cada equipe pode destinar aos salários de seus atletas, impedindo que proprietários mais ricos, como Steve Ballmer, monopolizem os principais jogadores do mercado. Qualquer valor pago a um atleta vinculado ao time deve ser devidamente registrado e, em caso de extrapolação do teto salarial, a franquia infratora pode ser submetida a sanções financeiras e/ou esportivas.
É justamente nesse ponto que surge o suposto esquema de fraude envolvendo o Los Angeles Clippers, Kawhi Leonard e Aspiration, companhia especializada em serviços de sustentabilidade e crédito de carbono. Segundo apuração do jornalista Pablo Torre2, em setembro de 2021, Ballmer investiu US$ 50 milhões na Aspiration. Apenas treze dias depois, a empresa firmou um contrato de patrocínio com os Clippers no valor de US$ 300 milhões. Pouco tempo após a divulgação do patrocínio com a franquia, Kawhi, que havia renovado seu contrato com o time dois meses antes, constituiu a empresa “KL2 Aspire LLC”.
Em abril de 2022, Aspiration e Kawhi, por meio da “KL2 Aspire LCC”, celebraram um contrato de patrocínio, duração de 4 anos e valor de US$ 28 milhões. No mesmo dia, os Clippers efetuaram o pagamento de US$ 32 milhões à Aspiration a título de créditos de carbono. Já em junho do mesmo ano, o diretor financeiro dos Clippers encaminhou comunicação à Aspiration confirmando novo desembolso de US$ 21 milhões para aquisição de créditos de carbono. Conforme relatado por Pablo Torre, tais valores teriam sido destinados ao pagamento de Kawhi, à manutenção das operações da empresa e ao cumprimento de metas de captação de recursos impostas à época. Aspiration também recebeu aportes Dennis Wong, acionista minoritário dos Clippers e amigo próximo de Ballmer, por meio de sua empresa “DEA 88 Investments”, além de novos investimentos do próprio Steve Ballmer.
No entanto, em março de 2025, o cofundador da Aspiration, Joseph Sandberg, foi preso em decorrência de denúncia criminal federal que o acusava de conspirar para fraudar investidores em pelo menos US$ 145 milhões. Nesse contexto, Aspiration acionou Chapter 11 do United States Bankruptcy Code, de modo a possibilitar a reorganização da empresa em momento de crise. A submissão da Aspiration ao Chapter 11 trouxe à tona documentos internos da companhia, que embasaram a investigação jornalística de Pablo Torre, publicada em setembro de 2025.
Entre os achados, destacou-se o contrato firmado com Kawhi, que recebeu US$ 28 milhões sem contrapartida efetiva, já que jamais promoveu a marca nem vinculou sua imagem à empresa. O “Boston Sports Journal” revelou ainda a existência de um segundo contrato entre Aspiration e Kawhi, que previa o repasse de US$ 20 milhões em quotas da empresa3.
Após a divulgação dos fatos, diversos ex-executivos da Aspiration assinaram uma declaração à Pablo Torre, na qual relataram que o acordo com Kawhi havia sido objeto de significativas objeções da alta administração da Aspiration e sequer fora analisado pelo Comitê de Investimentos da empresa. Ressaltaram, ainda, que a contratação de Kawhi destoava da estratégia de marketing da Aspiration, que buscava associar-se a celebridades engajadas em causas ambientais e de sustentabilidade, tema nunca levantado publicamente pelo jogador4.
O Conceito de Controle
O poder de controle em uma sociedade é a capacidade de um indivíduo ou uma outra sociedade de influenciar e direcionar as atividades de uma empresa. A Lei nº 6.404/76 – Lei das Sociedades por Ações (“LSA”), por exemplo, define, em seu artigo 116, o acionista controlador como a pessoa ou grupo de pessoas que é titular de direitos de sócio que lhe assegurem a maioria dos votos e o poder de eleger a maioria dos administradores, e que, fundamentalmente, usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.
No caso em análise, a figura de Steve Ballmer como controlador do L.A. Clippers é incontestável, visto que se trata do acionista majoritário do time de basquete. Contudo, o ponto crucial para a análise do escândalo reside em seu efetivo poder de controle sobre a Aspiration.
O controle nem sempre se baseia apenas na titularidade da maioria do capital votante, mas sim na efetiva capacidade de comando das atividades sociais. O poder de controle é, portanto, um poder de fato, exercido tanto na assembleia geral, onde o voto do controlador prevalece, quanto fora dela, por meio da influência sobre a administração. Assim, a doutrina reconhece o que se chama de “controle externo”, quando justamente o poder está sob agente externo, que por exemplo é um credor relevante para a companhia5.
Nesse sentido, a influência de Steve Ballmer sobre a Aspiration, decorrente de seus vultosos aportes financeiros, caracterizaria um provável “controle externo”. Isso significa que, embora ele não fosse o acionista controlador da empresa, ele exercia poder de fato sobre ela por meio de sua influência econômica, por um meio distinto do direito de voto e representatividade na administração conforme previsto em lei.
Dever Fiduciário do Controlador e Abuso de Poder
A existência de um poder do controlador, no entanto, impõe uma série de deveres a este. O mesmo artigo 116 da LSA, por exemplo, estabelece que o controlador deve usar esse poder para realizar o objeto social e cumprir a função social da companhia, tendo deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.
Dentre os deveres do controlador, destaca-se o duty of loyalty (dever de lealdade), que impede o controlador de atuar no interesse da companhia, e não em benefício próprio ou de terceiros6. Quando o controlador utiliza seu poder para fins pessoais, em detrimento dos interesses da sociedade, configura-se o abuso de poder.
No presente caso analisado, vemos que as ações de Ballmer possivelmente se enquadrariam em várias hipóteses de abuso de poder, especialmente naquelas que envolvem conflito de interesses. O conflito de interesses ocorre quando o controlador possui um interesse pessoal e oposto ao da companhia em determinada operação.
No escândalo dos Clippers, Ballmer se encontrava em ambos os lados da negociação: (i) como controlador dos Clippers, tinha o dever de zelar pelos interesses da franquia, garantindo que os contratos de patrocínio e as aquisições de créditos de carbono fossem vantajosos e alinhados à estratégia da empresa e não violassem as regras da liga esportiva; e (ii) como investidor da Aspiration, tinha interesse pessoal no sucesso financeiro da fintech, que foi diretamente beneficiada pelos aportes e contratos firmados com os Clippers.
Ou seja, o fato de Ballmer orquestrar uma transação que beneficiava uma empresa na qual ele tinha interesse pessoal, utilizando os recursos da companhia que ele controla, configuraria um desvio de finalidade. E mesmo que em última análise, o objetivo do esquema fosse beneficiar o jogador Kawhi Leonard para, por via indireta, fortalecer a equipe, o processo foi feito por meio de atos que representam um abuso do poder de controle, desrespeitando o dever de lealdade para com ambas as companhias.
O abuso de poder fica mais evidente quando ex-executivos denunciam que o contrato fora realizado contra a recomendação destes e fora dos procedimentos padrões da companhia, o que expõe a fragilidade das estruturas de governança da empresa, bem como a influência do investidor na tomada de decisão corporativa.
Considerações Finais
Com tudo, o presente caso envolvendo Kawhi Leonard, o L.A. Clippers e a Aspiration transcendem a crônica esportiva e as regras de teto de gastos da liga de basquete americana, para se tornar uma poderosa ilustração das complexidades do poder de controle e da importância dos deveres fiduciários do controlador.
A análise do episódio sob a ótica do direito brasileiro revela uma possível conduta de abuso de poder de Steve Ballmer como acionista controlador dos Clippers, por meio do direcionamento da equipe para realizar transações com a Aspiration. E por outro lado, a discussão sobre sua influência na Aspiration expõe os limites da legislação societária brasileira, visto que o visível “controle externo” exercido por Ballmer por meio de seu poder econômico perante a Aspiration não se enquadraria na definição legal de “acionista controlador” da LSA.
O episódio, portanto, reforça que a eficácia da governança corporativa depende da capacidade de responsabilizar os verdadeiros centros de poder, independentemente de sua formalização. Ao expor diversas falhas, o caso ilustra o imenso poder que um acionista controlador exerce sobre uma companhia — mesmo que seja uma franquia da maior liga de basquete do mundo — e reitera a necessidade de um rigoroso controle sobre transações com partes relacionadas, que são um campo fértil para o desvio de finalidade e o abuso de poder.


