Suitability: Um dever de adequação ainda em desenvolvimento no Mercado de Capitais Brasileiro

João Vitor C. C. Ohara e Matheus Melo Eschipio
João Vitor C. C. Ohara e Matheus Melo Eschipio

A regulação do mercado do mercado de capitais visa essencialmente reduzir as assimetrias informacionais existentes entre os emissores de valores mobiliários e os investidores, o que ocorre principalmente por meio de normativas pautadas no princípio do full disclosure, isto é, o compartilhamento compulsório de informações, de modo que os investidores, uma vez informados, possam tomar decisões conscientes e racionais.  

A crise financeira de 2007/2008 demonstrou, no entanto, uma fragilidade da regulação fundamentada unicamente no princípio do full disclosure, isto porque, os investidores, em especial os de varejo, não possuem a capacidade de agregar e compreender todas as informações divulgadas pelos participantes do mercado, de modo que o pressuposto de que a informação pura levaria a escolhas racionais não se mostra 100% verdadeira1. 

Neste contexto, a ideia de suitability ganha força enquanto uma perspectiva complementar de regulação no mercado de capitais. Suitability é uma palavra de origem inglesa que significa a adequação de algo para uma determinada pessoa2. No mercado, a expressão refere-se ao dever ético de garantir que os produtos ofertados sejam adequados ao perfil dos respectivos investidores. Ou seja, além de informar, os intermediários dos sistemas de distribuição de valores mobiliários, como corretoras e assessores de investimento, devem realizar uma espécie de filtro em relação aos produtos ofertados, assegurando que estes sejam compatíveis com a situação financeira e as necessidades do cliente3 

A regras de suitability, dessa forma, surgem como uma forma de mitigação do sistema puro de full disclosure, pois a responsabilidade de interpretação das informações disponíveis no mercado de capitais passa, em parte, dos investidores para os agentes intermediários, aos quais competem oferecer somente produtos que sejam compatíveis com o perfil de seus clientes4. 

Em consonância a esta nova perspectiva regulatória, em 2013, a Organização Internacional de Comissões de Valores Mobiliários (IOSCO), reconhecendo a necessidade, desenvolveu 9 princípios a serem observados nas regras de suitability5: (i) Classificação dos Clientes; (ii) Deveres Gerais dos Intermediários; (iii) Dever de Informar dos Intermediários; (iv) Proteção aos Investidores em Produtos Não Assessorados; (v) Regras de Suitability para os Serviços de Assessoramento do Intermediário; (vi) Adequação do Nível de Informações do Intermediário; (vii) Deveres de Compliance e Regras Internas de Suitability do Intermediário; (viii) Incentivos Financeiros do Intermediário; e (ix) Enforcement da Agência Reguladora. 

No Brasil, mesmo com a introdução da primeira norma sobre o assunto em 2013, sob a forma da Instrução CVM n° 539/2013, até 2019 o arcabouço normativo no país ainda se demonstrava parcialmente aderente ao princípio do Dever de Informar dos Intermediários, e mostrava-se inconsistente em relação ao princípio de transparência em relação aos Incentivos Financeiros dos Intermediários6 

Foi apenas em 2021, por sua vez, que a Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”), substituindo a Instrução CVM n° 539/2013, editou a Resolução CVM n° 30/2021, a qual estabelece as normas e procedimentos gerais de suitability a serem observados pelos agentes intermediários. Segundo a Resolução CVM n° 30, os intermediários possuem o dever verificação da adequação dos produtos, serviços e operações ao perfil de seus clientes, devendo para tanto verificar se: (i) o produto, serviço ou operação é adequado aos objetivos de investimento do cliente; (ii) a situação financeira do cliente é compatível com o produto, serviço ou operação; e (iii) o cliente possui conhecimento necessário para compreender os riscos relacionados ao produto, serviço ou operação. 

Já em 2023, de modo a complementar a Resolução CVM n° 30, editou-se a Resolução CVM 179/2023, a qual, em consonância as diretrizes da IOSCO, estabelece a obrigação de transparência total dos intermediários em relação aos seus arranjos de remuneração e potenciais conflitos de interesse, impondo a estes divulgar inclusive informações quantitativas e qualitativas sobre tais temas. 

Em paralelo, sob uma perspectiva de autorregulação, as Regras e Procedimentos de Distribuição de Produtos de Investimento da Associação Brasileira das Entidades do Mercado Financeiro e de Capitais (ANBIMA) estabelecem uma série obrigações complementares de suitability, das quais se destaca a classificações dos investidores em 3 tipos de perfis (baixa tolerância a risco, média tolerância a risco e tolerante a risco), bem como dos produtos de investimento. 

Embora a CVM tenha retirado o tema da supervisão prioritária em seu Plano Bienal de Revisão7, o conceito de suitability continua sendo uma questão relevante no mercado de capitais brasileiro. A regulação da CVM de fato conseguiu integrar o conceito de suitability aos mecanismos baseados no princípio de full disclosure, fazendo com que as informações divulgadas sejam não apenas acessíveis, mas também compreensíveis e adequadas ao perfil específico dos investidores. No entanto, a concretização dessa integração, de forma que os investidores realmente obtenham um entendimento claro e adequado das informações, permitindo decisões mais bem informadas e alinhadas com seus objetivos e capacidade financeira, ainda precisa de confirmação ao longo do tempo. 

Nos meses de junho e julho de 2024, a CVM conduziu uma pesquisa para entender a percepção dos investidores sobre o processo de aferição e avaliação de perfil8. Os dados serão utilizados no estudo de Avaliação de Resultado Regulatório, conforme o decreto 10.411/2020. Espera-se que essa avaliação demonstre que as mudanças realizadas realmente reforçam a proteção dos investidores e promovem um mercado de capitais brasileiro mais transparente, resiliente e eficiente. 

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João Vitor C. C. Ohara

Matheus Melo Eschipio

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