A não distribuição do dividendo mínimo obrigatório nas sociedades por ações
Um dos elementos caracterizadores das sociedades empresárias é justamente a sua finalidade lucrativa. Hebert Wiedemann chama o lucro de a “estrela polar” da sociedade1. Nesse sentido, o art. 981 do Código Civil, que estabelece que “Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade e a partilha, entre si, dos resultados”. Portanto, o objetivo primordial de se obter resultados encontra-se presente desde a concepção de uma sociedade empresária. Tal objetivo é preenchido justamente com a remuneração dos sócios, seja pela valorização da participação societária, ou sendo feito pelo pagamento de dividendos, então caracterizado como um direito essencial do acionista, conforme inciso I do Art. 109 da LSA. Todavia, o recebimento dos dividendos é uma mera expectativa do acionista, sendo materializado apenas com a declaração de distribuição desses dividendos na assembleia geral. Ou seja, embora a participação nos lucros sociais seja um direito do acionista, é possível observar hipóteses que confirmam que este não se trata de um direito absoluto.
DIVIDENDO MÍNIMO OBRIGATÓRIO
Conforme estabelecido pelo Art. 109 da LSA, é direto do acionista a participação dos lucros sociais por meio dos dividendos. Baseando-se nesse princípio, são vários os dispositivos que foram criados pelo legislador com intuito de promover a proteção da participação do acionista nos lucros, como o Art. 116, parágrafo único, e 154, caput, da LSA, por exemplo.
Entretanto, foi por meio do Art. 202 da LSA, que foi criado um sistema que obriga a companhia, em havendo lucro, distribuir pelo menos parte desse valor para seus acionistas, garantindo o direito de participação, e corrigindo distorções que ocorriam no passado, quando os lucros sociais eram comumente capitalizados em detrimento da remuneração dos acionistasi.
E ao contrário do dividendo não obrigatório, os acionistas nesse caso tem o direito de exigir o pagamento desses valores, desde que, por óbvio, a companhia apresente lucro naquele exercício social.
O percentual destinado ao dividendo mínimo obrigatório é definido de acordo com o estatuto social, e sendo esse omisso, metade do lucro líquido do exercício, diminuído com o percentual destinado para reserva legal, reserva para contingência, e à reserva para incentivos fiscais; e acrescido das reversões das reservas para contingências formadas em exercício anterioresi.
Feito o cálculo do dividendo mínimo obrigatório, conforme os critérios supracitados, a sua distribuição poderá ser limitada ao valor correspondente de lucro líquido do exercício social, ficando o remanescente registrado como reserva de lucro a realizar, sendo certo que caso esse valor não seja absorvido por prejuízos futuros, ficará a companhia obrigada a acrescê-los à primeira declaração de dividendos após a realização desse valor na reserva em questãoii.
Definição do Critério de Cálculo
A LSA define que em havendo a omissão estatutária sobre o critério de cálculo do dividendo mínimo obrigatório e a assembleia geral decidir por sanar a questão, alterando o estatuto social para que então seja criado um critério, esse não poderá ser inferior à 25% (vinte e cinco por cento) do lucro líquido apurado, após deduções e acréscimos mencionados, conforme estabelece o parágrafo 2º do art. 202 da referida lei.
O objetivo de referida proibição é a proteção dos acionistas que ingressaram na companhia e que, considerando a omissão, teriam direito a 50% (cinquenta por cento) do lucro líquido ajustado, dessa forma, a lei lhes conferiu um valor mínimo do percentual de dividendosi.
Destaca-se que nada impede que, em uma próxima assembleia geral, seguindo os critérios de quórum qualificado em razão do tema (art. 136, inciso III da LSA), os acionistas decidam por reduzir o percentual do dividendo mínimo obrigatório em montante inferior a 25% (vinte e cinco por cento), tendo em vista que a LSA é omissa nesse sentido. Contudo, destaca-se que a referida alteração deve ser baseada na razoabilidade e interesse social da companhia, a fim de evitar-se a caracterização de abuso do direito de voto e do poder de controlei.
Destaca-se que com o sancionamento da Lei Complementar nº 182, de 1º de Junho de 2021, “marco legal das startups e do empreendedorismo inovador”, tivemos alterações quanto à regra distribuição de dividendos mínimos quando da omissão do estatuto social para aquelas companhias que tiverem a receita bruta anual de até R$ 78.000.000,00 (setenta e oito milhões de reais). O novo procedimento define que, sendo o estatuto social omisso, não é necessário seguir o regramento descrito no art. 202 da LSA, ou seja, não seria necessária à distribuição mínima de pelo menos 25% do lucro líquido. Portanto, faculta à assembleia geral que estabeleça livremente o valor a ser distribuído a título de dividendos. Inclusive, há quem entenda que por estabelecer livremente o valor a ser distribuído, o legislador teria então autorizado a distribuição desproporcional de dividendos para empresas enquadradas nessas características, o que até então seria vedado pela LSA, entretanto, não é um ponto pacífico na doutrina e na jurisprudência dos tribunais.
HIPOTESES DE NÃO DISTRIBUIÇÃO DE DIVIDENDO MÍNIMO OBRIGATÓRIO
(i) RESERVA PARA CONTINGÊNCIAS
A primeira hipótese de não distribuição de lucros seria por meio da Reserva para contingências, visto que é uma das formas dos acionistas não distribuírem dividendos mínimos obrigatórios, tendo em vista o objetivo de compensar em exercício futuro a diminuição do lucro considerada provável. Entretanto, destaca-se que essa compensação se refere a prejuízos certos, estimáveis, devendo os valores levantados serem estritamente necessários para promover a compensação futura pretendida, recomendando-se, inclusive, o levantamento desses valores por auditores independentes. Ademais, entende-se que não é possível alocar o lucro total do exercício em reservas para contingências, tendo em vista a redação do Art. 195 da LSA, conforme anteriormente explicado.
(ii) DISTRIBUIÇÃO DE DIVIDENDOS INFERIORES AO OBRIGATÓRIO E A RETENÇÃO DO LUCRO TOTAL
A próxima hipótese a ser tratada, é aquela prevista no parágrafo 3º do Art. 202 da LSA, em que não havendo oposição de nenhum acionista presente, faculta à assembleia geral que delibere por um pagamento de dividendos inferior ao obrigatório, ou até mesmo, pela retenção de todo o lucro do exercícioi. Todavia, é estabelecido que apenas as companhias abertas que busquem capitação de recursos para emissão de debentures não conversíveis em ações, e as companhias fechadas, desde que não controladas por companhias abertas que não se enquadrem nas condições descritas, podem deixar de distribuir dividendos mínimos obrigatórios nesses moldes. Essa restrição foi feita com o objetivo de garantir que os acionistas de holdings ainda recebam os lucros das companhias operacionais que integram o grupo econômico, assim como, garante que os acionistas minoritários das companhias abertas não sejam prejudicados, considerando que a estrutura de companhias abertas que emitem debentures não conversíveis, sob o ponto de vista de dispersão acionária, em muito se assemelha às companhias fechadasi.
(iii) SUSPENSÃO DA DISTRIBUIÇÃO DE DIVIDENDO MÍNIMO OBRIGATÓRIO
Seguindo no tema da não distribuição de dividendo mínimo, chegamos à suspensão distribuição de lucros por meio dos dividendos mínimos obrigatórios, previsto no parágrafo 4º, do Art. 202. O referido dispositivo legal estabelece que caso a administração informe à assembleia geral ordinária que a companhia passa por uma situação financeira que não se mostre compatível com a distribuição de dividendos, pode a assembleia geral deliberar pela suspensão da distribuição de lucros. Dito isso, passando-se a observar o lado procedural da suspensão dos dividendos mínimos, levando-se em consideração as demais hipóteses já tratadas, observamos que a lei determina que para que exista a suspensão, deverá a administração elaborar um parecer com a exposição da justificativa acerca dos motivos de incompatibilidade entre a situação econômica da companhia e os dividendos mínimos obrigatórios, devendo ainda, esse mesmo relatório ser revisado pelo Conselho Fiscal da Companhia, se em funcionamento. Ademais, importante destacar que caso a companhia seja aberta, deverá ainda a administração encaminhar o referido parecer a CVM, dentro de 5 (cinco) dias da realização da assembleia geral ordinária, com as justificativas que levaram à transmissão da informação aos acionistas.
Feita a retenção dos dividendos por meio da suspensão de que trata o parágrafo 4º, do art. 202 da LSA, é determinado pelo parágrafo 5º da mesma lei, que esses valores sejam alocados em uma reserva especial, a chamada Reserva Especial de Dividendo Mínimo Obrigatório. Essa reserva, diferentemente das demais reservas previstas em lei, só pode ser utilizada para absorção de prejuízos em exercícios subsequentes, e não sendo esse o caso, deverão os valores alocados serem pagos como dividendos assim que a situação financeira incompatível declarada pela administração permitir. Por esse motivo, a reserva especial não pode ser utilizada para qualquer outra finalidade, senão a distribuição de dividendos ou absorção de prejuízos, não sendo equiparável com quaisquer outras reservas de lucros previstas na LSA.
Conclusão
Apesar de um direito essencial do acionista, a não distribuição do dividendo mínimo obrigatório é uma possibilidade da administração, e até mesmo uma faculdade do acionista, visto que independente de quaisquer hipóteses previstas em lei, se validamente deliberada por unanimidade dos acionistas em sede de assembleia geral, o dividendo mínimo obrigatório poderá ser suspenso, refletindo a máxima de que os direitos patrimoniais podem ser renunciados pelo consenso dos envolvidos. Assim, ressaltando a flexibilidade dos acionistas em decidir o destino dos lucros sociais, desde que todos estejam de acordo e que a situação financeira o permita.
Entretanto, essa mesma flexibilidade dos acionistas pode ser questionada em casos de fraudes ou má-fé por parte da administração, sendo certo que caso sejam comprovadas irregularidades em jus de suspensão dos dividendos, os acionistas que se sentiram lesados têm o direito de buscar a reparação e reaver seus dividendos. É essencial, portanto, que toda deliberação seja pautada na transparência e no melhor interesse da companhia e de seus acionistas, garantindo que a administração e os acionistas mantenham uma relação de confiança e que as práticas de governança corporativa sejam rigorosamente seguidas para assegurar os direitos patrimoniais de todos os envolvidos.