A responsabilidade da Bolsa de Valores perante os investidores: Uma análise do Recurso Especial Nº 2.157.955 – PR
INTRODUÇÃO
A B3 S.A. – Brasil, Bolsa, Balcão é a entidade que administra o principal mercado organizado de valores mobiliários do país, sendo responsável pela manutenção da infraestrutura de negociação, compensação e liquidação de operações realizadas na Bolsa de Valores. Mais do que um espaço de intermediação de negócios, a B3 desempenha papel essencial para a integridade e a estabilidade do mercado de capitais brasileiro, funcionando como órgão auxiliar da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), nos termos do art. 17, §1º, da Lei nº 6.385/1976.
Em razão desse papel institucional, surge o debate sobre a extensão da responsabilidade da B3, enquanto entidade administradora da Bolsa de Valores, em relação aos investidores que operam por intermédio das corretoras credenciadas. A questão é particularmente relevante porque, embora a B3 não mantenha relação direta com o público investidor, ela detém poderes de autorregulação e fiscalização sobre os agentes que atuam na Bolsa de Valores.
O Recurso Especial nº 2.157.955 – PR, julgado em agosto de 2025 pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), constitui o primeiro precedente de mérito da corte a enfrentar diretamente a questão da responsabilidade civil da B3 perante investidores prejudicados pela liquidação de uma corretora. A decisão, relatada pela Ministra Nancy Andrighi, fixou parâmetros importantes sobre o alcance do dever de fiscalização da B3 e sobre a inexistência de relação de consumo entre investidores e a entidade administradora do mercado.
O RECURSO ESPECIAL Nº 2.157.955 – PR
O caso teve origem em ação indenizatória ajuizada por dois investidores – Henrique Diesel Dietrich e Cabildo Administradora de Bens Ltda. – contra a B3, sob a alegação de que a entidade teria sido negligente na fiscalização da corretora Walpires S.A. CCTVM, a qual, mesmo desenquadrada dos requisitos financeiros mínimos, continuou a operar até a decretação de sua liquidação pelo Banco Central, em outubro de 2018. Segundo os autores, a omissão da B3 teria permitido a continuidade das operações da corretora e, consequentemente, a perda integral dos valores mantidos em conta corrente.
Na primeira instância, o pedido foi julgado improcedente. O Tribunal de Justiça do Paraná, porém, reformou parcialmente a sentença, reconhecendo responsabilidade civil da B3 e condenando-a a indenizar os autores pelos danos materiais, descontando apenas o valor de R$ 120.000,00 disponibilizado pelo Mecanismo de Ressarcimento de Prejuízos (MRP), instituído pela própria B3.
A B3 interpôs recurso especial sustentando, em síntese, que:
(i) não havia relação de causalidade entre sua conduta e o prejuízo dos investidores;
(ii) a fiscalização foi devidamente exercida, com instauração de três processos administrativos e aplicação de sanções; e
(iii) a existência do MRP afastaria eventual responsabilidade civil, já que se tratava de mecanismo próprio para indenização de investidores.
O regime jurídico da responsabilidade da B3
O STJ iniciou sua análise delimitando o regime jurídico aplicável. A corte afastou a incidência do Código de Defesa do Consumidor (CDC), entendendo que não há relação de consumo entre a B3 e os investidores, uma vez que a B3 não presta serviços diretamente ao público, mas atua de forma institucional, como administradora e fiscalizadora do mercado de capitais.
Consequentemente, a responsabilidade da B3 deve ser apurada sob a ótica dos artigos 186 e 927 do Código Civil, e na Lei nº 6.385/1976, que impõe o dever de fiscalização sobre as corretoras. Assim, a B3 só poderia ser responsabilizada mediante comprovação de negligência ou culpa no exercício dessa função.
O dever de fiscalização e a ausência de negligência
Com base no art. 17, §1º, da Lei nº 6.385/1976, a decisão reafirmou que as entidades administradoras das Bolsas de Valores são obrigadas a fiscalizar seus membros e as operações realizadas em seus ambientes de negociação. Essa fiscalização deve observar as normas da CVM e os regulamentos internos das entidades administradoras, que preveem procedimentos administrativos e aplicação de sanções (advertência, multa, suspensão ou exclusão).
No caso concreto, a Ministra Relatora observou que a B3 cumpriu integralmente seus deveres legais e regulamentares, pois:
(i) instaurou três processos administrativos contra a corretora Walpires;
(ii) aplicou sanções de advertência e multa; e
(iii) publicou as decisões sancionatórias em seu site, conforme exigido pelas normas de transparência da BSM Supervisão de Mercados.
Desse modo, o STJ concluiu que não ficou demonstrada a negligência no dever de fiscalização, uma vez que a B3 atuou dentro dos limites de sua discricionariedade regulatória. Segundo a relatora, “somente a demonstração de manifesta desproporcionalidade entre a sanção aplicada e a conduta praticada poderia caracterizar negligência da Bolsa, o que não ocorreu na espécie”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O julgamento do Recurso Especial nº 2.157.955 – PR representa um marco jurisprudencial na delimitação da responsabilidade civil das Bolsas de Valores no Brasil. Ao afirmar que a B3 não mantém relação de consumo com os investidores e que sua responsabilidade é com base no Código Civil e na Lei n° 6.385/76, o STJ reforçou a natureza institucional e autorregulatória da entidade, preservando o equilíbrio do sistema de mercado de capitais.
A decisão é acertada por diversos motivos. Em primeiro lugar, impedir a responsabilização objetiva da B3 evita a criação de um risco sistêmico desnecessário, que poderia elevar os custos de transação e de compliance para todo o mercado. Caso se admitisse que a B3 responda automaticamente pelos prejuízos decorrentes da quebra de uma corretora, haveria um efeito multiplicador de responsabilidade, desincentivando a entrada de intermediários e aumentando o custo das operações para todos os investidores.
Em segundo lugar, o acórdão reafirma a importância do modelo de autorregulação supervisionada instituído pela Lei nº 6.385/1976, no qual a CVM e a própria B3 compartilham competências de fiscalização e disciplina de mercado. Ao reconhecer a discricionariedade técnica da B3 na aplicação de sanções e medidas corretivas, o STJ preservou a autonomia necessária para o funcionamento eficiente do sistema financeiro.
Por fim, o precedente consolida uma orientação que alinha o direito brasileiro às melhores práticas internacionais, nas quais as Bolsas de Valores exercem função de infraestrutura de mercado, e não de garantidoras universais de solvência das instituições participantes. A responsabilização da B3 deve ocorrer apenas quando houver prova inequívoca de negligência no exercício de seus deveres de supervisão, o que não se verificou no caso concreto.
Em síntese, a decisão da Terceira Turma do STJ — ao isentar a B3 de indenizar investidores pela liquidação da corretora Walpires — preserva a racionalidade do sistema de valores mobiliários brasileiro, evitando a transferência indevida de riscos privados ao núcleo institucional do mercado e reforçando o princípio da segurança jurídica e previsibilidade regulatória que sustenta a confiança dos agentes econômicos.

