Fraude à execução contra credor em processo falimentar e desconsideração da personalidade jurídica: análise do caso “Banco Santos x Grupo Veríssimo”.

Letícia Alves Zamperlini

Introdução

O processo falimentar desempenha papel primordial na reestruturação de empresas insolventes, tendo como um de seus objetivos a satisfação das dívidas a serem recebidas pela massa falida.  No âmbito jurídico, a falência intersecciona uma complexidade de interesses relativos não só aos credores e devedores, como também ao Estado, motivo pelo qual garantir a liquidação de empresas que se encontram em estágio de insolvência é ponto de forte relevância para o aparato jurídico pátrio.

Entretanto, a fraude à execução representa óbice à aplicação efetiva do processo falimentar de diversos modos, já que, muitas vezes, as sociedades empresárias devedoras dissipam seu patrimônio entre terceiros, para inviabilizar o pagamento das dívidas pendentes em juízo, afastando responsabilidade de quitá-las. Então, como estratégia para satisfazer o inadimplemento, a parte credora pugna pela desconsideração da personalidade jurídica nos autos, para que recaia sobre os empresários individuais a responsabilidade sobre o débito cuja satisfação é crucial para o prosseguimento da liquidação da insolvente.

Na busca por coibir esta prática, encontra aplicabilidade o Artigo 50 do Código Civil (CC), cuja redação trata da desconsideração da personalidade jurídica nos casos de abuso desta pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. Em consonância, o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) reforça o posicionamento civilista, por também afastar a personalidade jurídica quando comprovados o abuso de poder e o ato ilícito, por exemplo.

O presente artigo incide justamente sobre a aplicação destes dispositivos legais no caso concreto, tendo como base o julgamento do caso “Banco Santos contra Grupo Veríssimo”, cuja decisão em segundo grau do TJSP reconheceu a fraude do grupo empresarial e decretou a desconsideração da personalidade jurídica, para fins de dar prosseguimento ao pagamento do débito devido há 15 anos ao Banco Santos.

Aspectos teóricos e síntese dos fatos

A fraude à execução é comportamento lesivo praticado por devedores cujo intuito é tão somente frustrar a execução de dívida pendente através da ocultação, redução ou dissipação do patrimônio empresarial. Valendo-se dolosamente de ato ilícito que contraria o princípio da boa-fé, muitos conglomerados empresariais adotam tal prática, a fim de evadir-se das responsabilidades patrimoniais.

Tal evasão, no entanto, quando ocorrem contra credor em processo falimentar, deve ser apreciada com especial atenção pelo Judiciário, tendo em vista a dimensão dos impactos sociais e econômicos gerados pela falência de uma empresa de suma relevância no mercado, especialmente quando está em jogo uma dívida milionária, como aquela que o Grupo Veríssimo devia ao Banco Santos S.A.

No caso em análise, o Banco Santos, ajuizou ação de execução em face da Verpar S.A, empresa de João Alves Veríssimo e Adelino Alves Veríssimo, para o adimplemento da dívida de quase 490 milhões gerada pelo não cumprimento de um contrato de mútuo firmado entre as partes em julho de 2004.

Para apuração dos bens de João Alves e Adelino, foram solicitadas em juízo medidas como arresto online de contas bancárias, penhora de imóveis e de outros bens dos executados. Só depois do deferimento das medidas é que os executados se manifestaram em juízo, requerendo a suspensão da execução, hipótese que foi afastada.

Foi neste momento que se levantou a suspeita de que os irmãos Veríssimo estariam ocultando seu patrimônio, uma vez que, os poucos bens levantados para penhora ainda foram reduzidos por cláusulas de impenhorabilidade ou eventual venda para terceiros, de modo que o valor correspondente ao restante não era sequer suficiente para quitar o inadimplemento.

Em acréscimo, os executados transferiram vários bens para pessoas jurídicas, especialmente para offshores sediadas no exterior que, como comprovam os bens juntados aos autos, estavam vinculadas a outros membros da família Veríssimo. O padrão de transferência do patrimônio acusou o desvio de finalidade e a confusão patrimonial causada pelos irmãos Veríssimo e foram fundamentais para a decisão em segunda instância, que reconheceu a desconsideração da personalidade jurídica afastada pelo juiz da Vara XX como havia requerido o Banco Santos, por entender que o alcance aos bens transferidos para as offshores era imprescindível para o adimplemento do débito.

A fundamentação

A decisão foi fundamentada especialmente à luz do Artigo 50 do Código Civil, que versa sobre a desconsideração da personalidade jurídica nos casos de abuso de personalidade, desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Ademais, houve menção ao Artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, o qual estabelece que a desconsideração da personalidade jurídica poderá ser efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica em razão de má administração.

No entanto, cabe mencionar que a legislação pátria vai além dos dispositivos utilizados, estendendo a tratativa do tema não só através do Código de Processo Civil em seus artigos 792, 793 e 794, como também é de entendimento uníssono na jurisprudência. E tal extensão se justifica pela intensidade dos prejuízos gerados pela fraude à execução, especialmente no caso entre o Banco Santos e o Grupo Veríssimo, já que a ocultação patrimonial dos executados afetava diretamente a liquidação do exequente.

A importância de assegurar a liquidação adequada de empresas em processo falimentar está relacionada à necessidade de preservar não só o processo falimentar de uma empresa, mas a ordem econômica como um todo. Isto porque, no caso de grandes instituições financeiras, a falência pode ter sua repercussão estendida de modo a afetar a sociedade inteira, por isso a importância em ter respaldo legal suficiente para garantir a liquidação segura dessas empresas. Caso contrário, permitir que aos credores driblar o pagamento de dívidas milionárias por meio de ocultação patrimonial poderia gerar uma série de desdobramentos como a perda de confiança no sistema bancário, com redução do crédito disponível e consequente desequilíbrio dos mercados financeiros. Ainda, esta “avalanche” atingiria outras empresas dependentes do funcionamento normal do sistema financeiro, o que inauguraria de vez uma crise econômica ainda mais ampla. Seria um efeito cascata de consequências devastadoras.

É neste âmbito que incide a aplicação rigorosa da desconsideração da personalidade jurídica e a identificação de práticas fraudulentas, como peças-chave para proteger o interesse dos credores e, ainda mais relevante, manter a estabilidade econômica com o funcionamento saudável do mercado, evitando uma catástrofe na economia que viria a afetar instituições e pessoas a nível nacional. Ainda, ao coibir a fraude à execução, cria-se maior credibilidade do sistema judicial, o que promove um ambiente mais estável para os investidores e empresários que procuram, cada vez mais, pela redução dos riscos. Ou seja, é o combate à fraude na fase executória é primordial não só para manter o equilíbrio econômico como também para estimular negócios e a entrada de capital estrangeiro no país, já que demonstra um sistema legal que protege o credor e o cumprimento integral dos contratos.

Conclusão

A sistemática do processo falimentar é pilar essencial para a reestruturação de empresas insolventes, tendo como meta saldar as dívidas pendentes relativas à massa falida. Neste contexto jurídico, a falência tangencia uma miríade de interesses que abrangem o âmbito privado, entre credores e devedores, e público, já que o prejuízo da liquidação pode vir a representar catástrofe econômica a nível nacional, o que ressalta, por óbvio, a importância substancial de garantir a liquidação de grandes empresas em fase de insolvência.

Todavia, a fraude à execução figura como um entrave significativo à aplicação efetiva do processo falimentar, manifestando-se em diversas facetas, haja vista que, como ocorrido entre Banco Santos e Grupo Veríssimo, as empresas devedoras deliberadamente dispersam seu patrimônio entre terceiros sem que, porém, os bens nunca saiam efetivamente de seu poder. Assim, mascaram a viabilidade de quitar as dívidas pendentes em juízo, em tentativa desonrosa de escapar da responsabilidade de honrá-las.

Como estratégia para sanar a inadimplência e vencer a fraude, os credores se veem amparados pela desconsideração da personalidade jurídica, pois atribuir aos empresários individuais a responsabilidade pela dívida é o modo mais efetivo de garantir a quitação crucial para dar seguimento ao processo de insolvência. A decisão do TJSP em segunda instância em reconhecer a fraude e viabilizar a desconsideração da personalidade jurídica em benefício do Banco Santos, deixa claro a tendência dos tribunais de, cada vez mais, proteger os credores o que, para casos similares ao da instituição bancária, representa também a garantia da estabilidade econômica do mercado, essencial para a prevenção de uma crise de proporções catastróficas. Para além do embate entre as partes, o combate à fraude no processo de execução ultrapassa as vias legais e se revela como assunto que concerne à proteção da sociedade brasileira como um todo.

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