Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica e suas Novas Aplicações

João Vitor Lopes Cunha

As pessoas jurídicas, assim como as pessoas físicas, possuem aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações. Em outras palavras, toda pessoa jurídica é dotada de personalidade jurídica, permitindo que ela possa figurar nas relações jurídicas que rodeiam suas atividades, como firmar contratos, ajuizar demandas judiciais, abrir conta bancária, entre outras.

Ademais, é importante destacar que a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores[1], desta forma, possui patrimônio autônomo e exerce direitos em nome próprio, além de também apresentar domicílio e nacionalidade que podem ser distintos do das pessoas que a formam, por exemplo.

Diante dessa autonomia que a pessoa jurídica possui, surgiu-se a necessidade da criação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, previsto no art. 50 do Código Civil. Por meio deste, de ofício pelo juiz ou a requerimento da parte prejudicada, se relativiza a autonomia da personalidade jurídica da pessoa jurídica, com o intuito de atingir os seus sócios e administradores, em detrimento do mau uso de seus fundamentos por desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Segundo Fábio Ulhoa:

“O objetivo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é exatamente possibilitar a coibição da fraude, sem comprometer o próprio instituto da pessoa jurídica, isto é, sem questionar a regra da separação de sua personalidade e patrimônio em relação a seus membros. Em outros termos, a teoria tem o intuito de preservar a pessoa jurídica e sua autonomia, enquanto instrumentos jurídicos indispensáveis à organização da atividade econômica, sem deixar ao desabrigo terceiros vítimas de fraude.”[2]

Diante do exposto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem definido novas interpretações e aplicações para esse instituto. A seguir, serão abordadas duas decisões recentes:

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DE ASSOCIAÇÃO CIVIL

Em setembro de 2023, a 3ª Turma do STJ negou provimento ao REsp 1.812.929/DF dos dirigentes de uma associação civil responsabilizada pelo uso indevido de uma marca. A associação foi condenada por danos materiais, mas o patrimônio da pessoa jurídica impediu que a sentença fosse cumprida. Assim, a autora da ação solicitou que a personalidade da pessoa jurídica fosse desconsiderada.

A aplicação desse instituto para as Associações Civis possui certas dificuldades, uma vez que, diferentemente das sociedades (pessoa jurídica para qual o instituto é principalmente destinado), esse tipo de pessoa jurídica possui um grande número de associados sem qualquer vínculo de obrigações, conforme parágrafo único do art. 53 do Código Civil, sendo o elemento pessoal dos associados disperso. Entretanto, é válido destacar que a legislação não traça diferenciação entre a aplicação do instituto para associações e para sociedades, mesmo que sejam estruturalmente bastante distintas.[3]

Por isso, de modo a evitar outras formas de aplicações danosas, o STJ estabeleceu que a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica é admissível, sendo mais prudente é a imputação da responsabilidade apenas aos associados que estão em posições de poder na condução da entidade, já que seria irrazoável estender a responsabilidade patrimonial aos associados que pouco influenciam na prática dos atos associativos ilícitos. Ademais, para a aplicação do instituto, devem ser observados os requisitos legais dispostos, no caso de aplicação da Teoria Maior, no art. 50 do Código Civil e, no caso da Teoria Menor, como na legislação consumerista, por exemplo, no art. 28 do Código de Defesa do Consumidor.[4]

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA EXECUÇÃO FISCAL

Desde a criação do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ) com o Código de Processo Civil de 2015, diversas discussões e decisões divergentes entre Tribunais surgiram a respeito do redirecionamento da execução fiscal para incluir sócios ou terceiros como responsáveis por dívidas tributárias, por meio da aplicação do incidente.

A Primeira Turma do STJ, em diversos julgados, reconheceu a necessidade de aplicação do IDPJ, de forma excepcional, nos casos em que houver responsabilização de terceiro que decorra de hipótese de abuso de direito, fraude ou simulação, conforme disposto no art. 50 do Código Civil. Ademais, para tal aplicação, não podem estar comprovadas as hipóteses de responsabilidade de terceiros previstas no Código Tributário Nacional, mais especificamente nos artigos 134 (trata sobre responsabilidade de terceiros por sucessão) e 135 (responsabilidade pessoal de terceiros por atos praticados com excesso de poder ou infração à lei, contrato social ou estatuto) e, também, não pode o terceiro estar identificado na Certidão de Dívida Ativa.

A Segunda Turma[5] do mesmo Tribunal, por sua vez, posicionou-se em outro julgado semelhante, pela incompatibilidade do IDPJ com a execução fiscal. Tal entendimento se deu pelo fato de que a responsabilidade de terceiros tratada nos já mencionados artigos não necessita da desconsideração da pessoa jurídica, uma vez que a responsabilidade tributária dos sócios já é atribuída por força da própria Lei, não havendo necessidade do IDPJ.[6]

Mais um exemplo dessa diversidade de opiniões a respeito do tema, é o posicionamento do Tribunal Regional Federal da 3ª Região que, no IRDR nº 0017610-97.2016.4.03.0000, fixou a seguinte tese:

“Não cabe instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica nas hipóteses de redirecionamento da execução fiscal desde que fundada, exclusivamente, em responsabilidade tributária nas hipóteses dos artigos 132, 133, I e II e 134 do CTN, sendo o IDPJ indispensável para a comprovação de responsabilidade em decorrência de confusão patrimonial, dissolução irregular, formação de grupo econômico, abuso de direito, excesso de poderes ou infração à lei, ao contrato ou ao estatuto social (CTN, art. 135, incisos I, II e III), e para a inclusão das pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal, desde que não incluídos na CDA, tudo sem prejuízo do regular andamento da Execução Fiscal em face dos demais coobrigados”.

Diante de tantas divergências, a Primeira Seção do STJ vai definir se o IDPJ é compatível com o rito da execução fiscal e, no caso de compatibilidade, as hipóteses de imprescindibilidade de sua instauração, por meio do julgamento do Recurso Repetitivo cadastrado na base de dados no Tribunal como Tema 1.209. Por conta dessa controvérsia, 5 recursos especiais de relatoria do Ministro Francisco Falcão estão afetados desde 28 de agosto de 2023, aguardando decisão que irá uniformizar o entendimento dentro do Tribunal e causar grande impacto jurídico e financeiro, uma vez que aborda interesse da Fazenda Pública.

[1] STJ – REsp: 1786311/PR, Relator: Ministro FRANCISCO FALCÃO, Data de Julgamento: 09/05/2019, SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/05/2019.

[1]Brasil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2022. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2022, art. 49-A.

[2]Coelho, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, vol.2.5° ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.555.

[3]Leonardo, Rodrigo Xavier. Associações. 2 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. e-book. RB-7.20.

[4]STJ – REsp: 1812929 – DF (2019/0130084-7), Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 12/09/2023, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 28/09/2023.

[5]Primeira Turma aplica desconsideração da personalidade jurídica para permitir defesa de sócio em execução fiscal. Superior Tribunal de Justiça, 2019. Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2019/2019-03-12_08-24_Primeira-Turma-aplica-desconsideracao-da-personalidade-juridica-para-permitir-defesa-de-socio-em-execucao-fiscal.aspx>. Acesso em: 12.11.2023.

[6]STJ – REsp: 1786311/PR, Relator: Ministro FRANCISCO FALCÃO, Data de Julgamento: 09/05/2019, SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/05/2019.

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