Tributação de Lucros e Dividendos: Cenário Atual e a Questão da Bitributação
Introdução
A tributação de lucros e dividendos no Brasil está no centro das discussões tributárias de 2024. Recentes declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que repetidamente ressalta o seu desejo de alterar as regras de tributação de dividendos, reforçam a importância do tema. Assim, este artigo visa analisar a relevância atual da problemática da tributação de lucros e dividendos, com ênfase na questão da bitributação, e como o modelo de tributação poderia ser desenhado, comparando a situação brasileira com a de outros países.
Contexto Atual
Ao mesmo tempo em que o governo trabalha na regulamentação da reforma tributária sobre consumo promulgada no fim do ano passado, também prepara a segunda etapa da mudança no sistema de impostos, que visa alterar agora regras da tributação da renda. Entre as principais mudanças que a nova fase da reforma tributária deve prever está a tributação de dividendos, que hoje é isento de Imposto de Renda (IR) desde 1995.
A tributação dos dividendos é defendida por integrantes da equipe econômica. “Muito provavelmente haverá o retorno da tributação de dividendos, junto com a redução da tributação da empresa”, disse o secretário especial para a reforma tributária, Bernard Appy. Atualmente existem diversos projetos de lei em tramitação que propõem a tributação de dividendos no Brasil, dentre os quais está o Projeto de Lei 2.337/21, que propõe o recolhimento de 15% dos dividendos diretamente na fonte. O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados e aguarda votação do Senado Federal.
Questão da Bitributação
A bitributação é uma das principais preocupações associadas à proposta de tributação de dividendos no Brasil. Atualmente, os lucros das empresas já são onerados pelo Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e pela Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), com uma alíquota combinada de 34%, uma das mais altas entre os 111 países avaliados pela OCDE. Portanto, ao tributar os dividendos distribuídos aos acionistas, estar-se-ia, em tese, tributando novamente recursos que já foram objeto de incidência tributária na esfera corporativa.
Essa situação levanta um debate sobre justiça fiscal e progressividade tributária. A intenção do governo ao propor a tributação de dividendos é promover uma distribuição de renda mais justa, atingindo principalmente os estratos mais altos da população, que tradicionalmente se beneficiam mais desses rendimentos. Essa medida é vista pelo governo como um mecanismo de justiça fiscal, destinado a reduzir as desigualdades socioeconômicas por meio de um sistema tributário progressivo, em que aqueles com maior capacidade financeira contribuem de forma proporcionalmente maior.
Entretanto, críticos argumentam que a nova taxação poderia configurar uma bitributação, desestimulando investimentos e prejudicando o empreendedorismo, elementos fundamentais para o crescimento econômico. A manutenção da isenção de dividendos é vista por alguns como um incentivo ao investimento e ao empreendedorismo, enquanto outros acreditam que essa isenção contribui para a regressividade do sistema tributário brasileiro.
Há, porém, dados que sugerem que a manutenção da isenção de dividendos é uma das principais causas da regressividade do sistema tributário brasileiro. Estudos, como o livro “Progressividade Tributária e Crescimento Econômico” de 2022, organizado por Manoel Pires, destacam que a elevada tributação sobre lucros corporativos e a isenção de dividendos contribuem para distorções que favorecem os mais ricos. A obra aponta que a média da carga tributária efetiva para empresas no Brasil foi de 18,08% no período de 2012 a 2022, refletindo o impacto do planejamento tributário utilizado pelas companhias para reduzir sua carga fiscal. Apesar das alíquotas mais elevadas, o nível de arrecadação governamental é baixo. Alguns sugerem que aumentar a alíquota nominal resolveria o problema, mas isso poderia prejudicar o desempenho econômico das empresas que não se beneficiam das isenções fiscais existentes.
Assim, vê-se que, apesar de a alíquota geral aplicada às empresas no Brasil ser bastante alta, o sistema tributário supostamente apresenta diversas distorções, o que justificaria a necessidade de transferir parte da carga tributária para a renda das pessoas físicas. Essa mudança poderia ampliar a progressividade do sistema e trazer ganhos de eficiência econômica.
A discussão sobre a bitributação também é influenciada por comparações internacionais. O sistema tributário brasileiro foi concebido nos anos 1990 e não acompanhou as reformas tributárias que reduziram as alíquotas corporativas nas maiores economias do mundo. Isso deixou o país para trás em termos de competitividade.
Além disso, a prática do Brasil de manter a isenção de impostos sobre os dividendos distribuídos aos acionistas é exceção. Dentre os países desenvolvidos com sistemas tributários que são considerados modernos e eficientes, praticamente todos realizam a tributação. Assim, diversos países implementam sistemas que buscam equilibrar a necessidade de arrecadação fiscal e o incentivo ao investimento privado, promovendo, ao mesmo tempo, a equidade. Esses sistemas variam consideravelmente entre si, desde a dupla tributação integral, em que os lucros são tributados tanto no nível corporativo quanto no momento em que os dividendos são recebidos pelos acionistas, até modelos de crédito tributário integrado, que têm como objetivo evitar ou minimizar o impacto da bitributação.
Um aspecto crucial nesse contexto é a forma como cada país trata a bitributação. Alguns adotam o sistema de imputação, permitindo que o imposto pago pela empresa sobre os lucros seja creditado aos acionistas quando eles recebem os dividendos, o que alinha a tributação entre a empresa e o acionista, evitando a dupla tributação e incentivando a distribuição de lucros. Outros países preferem aplicar alíquotas reduzidas sobre os dividendos ou estabelecer faixas de isenção, com o intuito de mitigar os efeitos negativos da bitributação sobre as decisões de investimento.
No Brasil, no entanto, mesmo com uma alta alíquota sobre os lucros das empresas, há um baixo nível de arrecadação governamental, exacerbado por exceções e brechas. Esse cenário abre espaço para a formação de lobbies que buscam fragmentar o sistema tributário para beneficiar grupos específicos de empresas com menor produtividade.
Vale ressaltar que, mesmo entre a classe empresarial, há aqueles que não se opõem à tributação de dividendos. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) sugere que seja acompanhada de uma redução da alíquota nominal do IRPJ e da CSLL para um patamar abaixo da média da OCDE (23%). Essa parece ser também uma preocupação da equipe econômica do governo. Recentemente, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, enfatizou que “não podemos tributar a [pessoa] jurídica e a física somando as alíquotas, porque não vai funcionar. Nosso compromisso sempre foi o de manter a carga tributária estável.” Essa declaração reflete a necessidade de um equilíbrio delicado na estruturação da nova política tributária, garantindo que a carga tributária total sobre os dividendos não seja excessiva e não comprometa a competitividade das empresas brasileiras e desincentive os investimentos.
Conclusão
A experiência internacional indica que políticas bem-sucedidas na área de tributação de dividendos são aquelas que a integram em um sistema tributário coerente e justo. Para o Brasil, é essencial considerar essas práticas ao implementar a tributação de dividendos, garantindo que os objetivos fiscais sejam alcançados sem prejudicar o crescimento econômico e a justiça social.
As propostas devem ser analisadas à luz dos princípios constitucionais brasileiros da capacidade contributiva e da isonomia. É essencial garantir que a nova legislação respeite esses princípios e não resulte em bitributação excessiva ou em desequilíbrios fiscais. A legislação infraconstitucional, como a Lei do Imposto de Renda, precisará ser ajustada para detalhar as condições e alíquotas da nova tributação. Mecanismos adequados de crédito ou compensação serão necessários para evitar a bitributação e garantir a viabilidade das propostas.
Além disso, a tributação dos lucros e dividendos não pode ser encarada de maneira simplista e nem vista como uma bala de prata que solucionaria os problemas fiscais do Brasil. O economista Marcos Lisboa, ex-presidente do Insper, é um crítico da ideia de que a tributação de dividendos seria solução para os problemas fiscais do país. Segundo ele, a defesa de medidas como esta é uma “saída fácil” que, embora tenha apelo, não resolverá o problema fiscal nem a desigualdade de renda no país. Lisboa argumenta que o grande impacto de justiça social da política pública não é via tributação, mas sim via gasto público, destacando a importância da redução de gastos com a manutenção de privilégios, tais como os altos gastos com a elite do funcionalismo, e de investimentos em educação e cuidados das famílias mais vulneráveis.
Em suma, a questão da bitributação dos dividendos é complexa e multifacetada, exigindo um desenho tributário cuidadoso que equilibre a necessidade de arrecadação com os princípios de equidade, da eficiência econômica e da justiça social. Caso a tributação dos lucros e dividendos avance na agenda legislativa, a realização de uma discussão técnica e aprofundada, a revisão das alíquotas corporativas e a consideração de práticas internacionais são passos fundamentais para assegurar que a nova política tributária alcance seus objetivos sem prejudicar o ambiente de negócios e o crescimento econômico do país.
Referências
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