Reforma Tributária: Simplificação Fiscal e o Perigo do Aumento no Contencioso Judicial

A Emenda Constitucional nº 132/2023 e os Projetos de Lei Complementar nº 68/2024 e nº 108/2024 representam a maior reformulação do sistema tributário brasileiro desde a Constituição de 1988. A substituição do modelo fragmentado de tributos sobre o consumo por um sistema dual — formado pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) — traz consigo promessas de racionalidade, mas também enseja preocupações imediatas com a capacidade de absorção e resposta do Poder Judiciário.
Em estudo técnico coordenado pela Ministra Regina Helena Costa e aprovado pela 1ª Seção do STJ, o Grupo de Trabalho instituído pela Portaria STJ/GP nº 458/2024 alertou: o novo sistema poderá multiplicar por três o volume de litigiosidade judicial relacionada à tributação sobre o consumo, caso não haja integração efetiva entre os entes federativos na cobrança e defesa dos novos tributos.
A promessa: simplificação e racionalidade
A espinha dorsal da reforma é a extinção dos tributos PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS, substituídos pela CBS (federal) e pelo IBS (estadual e municipal). Ambos são IVAs modernos, não cumulativos, com base ampla e mecanismos como o split payment e cashback para mitigar sonegação e reduzir regressividade.
A alíquota total de referência prevista é de 26,5% (CBS + IBS), com regimes diferenciados para diversos setores. Entre eles, a construção civil, saúde, educação, transporte público e alimentos terão alíquotas reduzidas. Nanoempreendedores, que faturem até R$ 40,5 mil por ano, serão isentos.
Por outro lado, a ampla substituição legislativa e a inédita complexidade operacional e federativa podem gerar um efeito reverso: o aumento da fragmentação da cobrança e do contencioso tributário.
A realidade: triplicação da litigiosidade
A Constituição preserva competências independentes de lançamento, fiscalização e cobrança para cada ente federado. O que significa, na prática, que um mesmo fato gerador pode ensejar até três lançamentos, contestações administrativas e execuções fiscais distintas – uma para cada esfera (União, Estado, Município).
O contencioso administrativo do IBS, embora formalmente unificado, pode julgar separadamente infrações sobre o mesmo fato, dado que os lançamentos são independentes. No Judiciário, a falta de integração entre os Fiscos manterá o cenário de execuções múltiplas e ações antiexacionais paralelas.
Segundo estimativas do STJ, a litigiosidade relacionada a CBS e IBS poderá gerar um aumento de:
- 26% no total de execuções fiscais;
- 9% nas ações antiexacionais – para interpretação legislativa -, podendo alcançar até 236 mil novos processos por ano;
- 35% na matéria tributária julgada no STJ.
Para o contribuinte, isso significa que um único erro fiscal ou divergência na apuração de tributos poderá gerar três autuações distintas: uma federal (CBS), uma estadual (IBS estadual) e outra municipal (IBS municipal).
O risco: colapso da jurisdição e insegurança jurídica
Caso não haja coordenação entre os entes e a Justiça permaneça segmentada, será necessário ajuizar:
- uma execução fiscal federal para a CBS;
- uma estadual para o IBS estadual;
- outra municipal para o IBS municipal.
Para o contribuinte que quiser discutir a incidência dos tributos, será forçado a ajuizar múltiplas ações contra diferentes entes, em diferentes jurisdições. Isso dificulta o exercício da ampla defesa e compromete a previsibilidade do direito.
O risco de decisões conflitantes, aumento de tutelas de urgência díspares e jurisprudência fragmentada é real. E como alerta o STJ, esse cenário pode comprometer não apenas a eficiência da reforma, mas a própria credibilidade do sistema tributário como um todo.
As propostas: soluções em debate
O Grupo de Trabalho do STJ e outras instituições sugeriram uma série de medidas para mitigar o impacto da reforma no Judiciário:
a) Criação de ações diretas de legalidade e ilegalidade no STJ – Com natureza objetiva, essas ações poderiam uniformizar a interpretação de normas federais relativas a IBS/CBS, evitando decisões divergentes. No entanto, geram preocupações quanto à ampla defesa e ao contraditório.
b) Concentração de competência na Justiça Federal – Unificar as ações judiciais relativas à CBS e ao IBS em juízos federais únicos é uma alternativa viável, mas que exigirá mudanças constitucionais e legais, além de forte cooperação institucional entre União, Estados e Municípios.
c) Estabelecimento de alçadas mínimas e prévio requerimento administrativo – Medidas que poderiam racionalizar a propositura de execuções fiscais e evitar litígios desnecessários.
d) Criação de um Fundo de Custeio Judicial – Proposta inovadora para financiar a ampliação da estrutura da Justiça Federal, diante da nova demanda.
A proposta de criação de um Tribunal Federal com juízes estaduais e federais foi rejeitada pelo STJ, por falta de viabilidade operacional, orçamentária e constitucional.
Alçadas mínimas e requerimento administrativo prévio: impactos para o contribuinte
Entre as medidas propostas pelo Grupo de Trabalho do STJ para evitar o colapso do sistema judicial está a fixação de alçadas mínimas para a propositura de execuções fiscais, acompanhada da exigência de prévio esgotamento da via administrativa antes do ajuizamento de ações de cobrança.
Na prática, essas medidas têm o potencial de impactar positivamente a rotina dos contribuintes, especialmente aqueles de menor porte, que hoje enfrentam um volume excessivo de execuções fiscais por débitos de baixo valor ou inconsistências formais. A fixação de valores mínimos para ajuizamento — nos moldes do que já faz a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) por meio da Portaria PGFN nº 6.757/2022 — poderia evitar ações que custam mais ao Estado do que o valor efetivamente cobrado.
Do ponto de vista operacional e estratégico, a exigência de requerimento administrativo prévio significa que o contribuinte deverá ser previamente intimado e ter a oportunidade de apresentar sua defesa na esfera administrativa, antes da judicialização do crédito. Isso confere maior previsibilidade, além de permitir a correção de erros de fato ou direito sem necessidade de litígio judicial imediato.
Para os contribuintes, isso representa, na prática:
- Menos execuções fiscais por valores irrelevantes: empresas que enfrentam dezenas de execuções por diferenças mínimas ou débitos já em negociação seriam poupadas desse desgaste.
- Mais tempo para negociar ou corrigir falhas: a cobrança administrativa prévia permitiria resolver pendências sem litígio, com parcelamentos, retificações ou apresentação de defesa técnica.
- Redução de custos com advogados e garantias judiciais: menos execuções significa menos necessidade de apresentar garantias (como seguros ou fianças) e menor risco de penhora de valores ou ativos.
- Foco no que realmente importa: com menos ruído de execuções pequenas, o contribuinte pode organizar sua regularização fiscal de forma mais estratégica, priorizando débitos mais relevantes e evitando efeitos colaterais como a negativa de certidões.
Mas há riscos que merecem atenção
- Acúmulo silencioso de dívidas: débitos que não forem executados podem continuar crescendo com juros e multa, e se tornar um problema maior no futuro. Eles seguem ativos na dívida ativa e podem impedir a emissão de certidões ou o acesso a benefícios fiscais.
- Desigualdade entre entes: como cada ente (União, Estado e Município) poderá adotar limites diferentes.
Essas medidas também estão alinhadas ao princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF), ao privilegiar a solução administrativa como etapa preliminar à ação judicial — sem excluir o direito de defesa plena.
No entanto, sua eficácia dependerá da regulamentação específica em leis complementares e da padronização entre os entes federativos. Caso cada ente (União, Estado, Município) adote critérios distintos, o risco é que o problema apenas se desloque para uma nova arena de incertezas.
O alerta: a complexidade ainda existe
Embora a reforma caminhe na direção de um IVA moderno, é preciso reconhecer que ela não representa, por si só, uma simplificação plena. As regras de transição são longas (até 2033), os regimes especiais são numerosos, e a gestão dos créditos acumulados, devoluções e ressarcimentos continua burocratizada.
Ainda não há clareza sobre:
- o real alcance das alíquotas efetivas;
- a harmonização das instâncias administrativas;
- os critérios para compensação de créditos interestaduais.
Além disso, a proposta de realizar o pagamento do imposto no momento da liquidação da operação (split payment) e devolver parte dos tributos para consumidores de baixa renda (cashback) pode, no futuro, simplificar e tornar o sistema mais justo. Mas a eficácia desses mecanismos depende de integração tecnológica entre Fiscos, bancos, emissores de nota fiscal e empresas — o que ainda está em fase de construção.
Conclusão
A Reforma Tributária é, sem dúvida, um passo fundamental para a modernização do sistema fiscal brasileiro. Mas sua efetividade depende menos do texto constitucional e mais da coordenação institucional, da regulamentação infraconstitucional e da governança judicial do novo modelo.
Para as empresas, o momento é de antecipação: mapear riscos, revisar operações e contratos, adaptar sistemas e, sobretudo, desenvolver estratégias de mitigação de litígios.
O desafio não é apenas tributário – é estrutural. E o sucesso da reforma dependerá de como o Estado brasileiro, em todas as suas esferas, será capaz de transformar promessa em prática, complexidade em coerência e conflito em previsibilidade.