Natureza Jurídica das Soqueiras de Cana-de-Açúcar

Introdução
Se da época colonial até meados do século passado o valor da cultura canavieira estava sobretudo na produção do açúcar, a instituição do Programa Nacional do Álcool (Proálcool) em 1975 renovou o interesse econômico da cana-de-açúcar pelo prisma da produção energética, a ponto do Brasil ter produzido, no ciclo 2024-2025, um total de 676,96 milhões de toneladas1.
A manutenção e continuidade dessa indústria construída ao redor da cultura canavieira demanda financiamentos constantes, os quais, muitas vezes, são amparados por garantias contratuais constituídas sobre uma parcela do patrimônio dos próprios agricultores.
Não raro, os agricultores oferecem aos seus credores, como garantia dos créditos tomados, as próprias soqueiras da cana-de-açúcar; isto é, os brotos que surgem na base do caule da cana-de-açúcar após a colheita e que formarão a próxima safra sem necessidade de plantio.
Ocorre que a natureza jurídica das soqueiras é, em si própria, controvertida. Compreendê-la, contudo, mostra-se fundamental para a definição das relações jurídicas admissíveis de serem constituídas sobre elas.
Classificação das soqueiras como objetos de direito
Definir o regime jurídico adequado das soqueiras, importa em ordená-las dentre as diferentes classes de bens objetos de direito.
Inicialmente, cabe apontar que a definição da natureza jurídica das soqueiras de cana costuma partir da distinção entre “benfeitorias” e “acessões”2. Contudo, essa perspectiva não parece adequada, uma vez que a própria contraposição entre essas duas categorias seria equivocada.
Conforme registra A. Junqueira de Azevedo3, as benfeitorias correspondem a despesas e obras que se faz na coisa para conservá-la, aumentar seu uso ou embelezá-la. Assim, as acessões não coincidem precisamente com a categoria das benfeitorias, pois estas também abarcam as meras despesas com a coisa que não se revelam em obras ou representações exteriores e visíveis. Daí o autor apontar que “toda acessão industrial é benfeitoria, embora nem toda benfeitoria seja acessão industrial”.
Adicionalmente, a própria categoria dos chamados bens acessórios é igualmente insuficiente para solucionar a questão, uma vez que dizer o acessório é “[…] aquele cuja existência supõe a do principal” (art. 92 do CC/02) diz pouco. Na realidade, a classe dos bens reciprocamente considerados consiste em um conjunto de elementos heterogêneos, composto por um grupo variado de bens marcados por crescente autonomia4.
Consequentemente, dizer que as soqueiras são bens acessórios ao terreno transmite pouca ou nenhuma informação para definirmos o seu regime jurídico, uma vez que ainda seria necessário definir se as soqueiras correspondem a partes integrantes, pertenças ou uma coisa secundária.
Considerando que as soqueiras são os brotos que nascem no terreno, após a colheita da safra anterior; pode-se concluir que existe um vínculo espacial entre soqueira e terreno, pelo qual as soqueiras da cana subordinam-se econômica e materialmente ao terreno, já que a função e aproveitamento das soqueiras depende da pré-existência do terreno onde estão plantadas5.
Assim, o terreno será considerado como a coisa principal, nos termos do art. 92, primeira parte, do CC/02 (“principal é o bem que existe sobre si […]”. Por sua vez, as soqueiras correspondem a uma coisa acessória; mas, como já se indicou, esse conceito é insuficiente para definir o regime jurídico desses bens, uma vez que compreendem um conjunto de elementos heterogêneos.
As soqueiras não são pertenças, porque o que define as pertenças é a relação fática de auxílio entre a coisa principal e a coisa auxiliar (relação de pertinencialidade), pela qual a coisa acessória passa a prestar ajuda ao propósito ocupado pela coisa principal, sem perder a sua independência individual como coisa autônoma6.
As soqueiras, contudo, ao serem plantadas ou brotarem do solo, estão a ele materialmente vinculadas. Esse não é, porém, um vínculo de mero auxílio, porque as soqueiras não têm autonomia independente e fazem parte da própria composição do terreno. Daí ser possível caracterizá-las como “partes integrantes”, isto é, como aqueles elementos que entram na unidade da coisa principal e fazem parte de sua própria identidade7.
Não obstante, as soqueiras de cana-de-açúcar não são partes integrantes essenciais, já que estas são caracterizadas pelo fato de sua separação da coisa principal resultar na destruição ou severa diminuição de valor ou utilidade da coisa principal ou da própria coisa acessória. Igualmente, também se caracteriza como parte integrante essencial aquela que, mesmo podendo ser materialmente desmembrada de outra, não pode ser compreendida de modo separado sem sofrer depreciação econômica, considerando os usos do tráfico8.
Ao se classificar algo como parte integrante essencial, tal objeto perde por completo a sua autonomia e, consequentemente, não pode ser objeto de direito real em separado.
As soqueiras, assim, poderiam ser classificadas por partes integrantes não-essenciais; porque, mesmo que a elas não possam subsistir de forma autônoma separadamente do terreno, os usos do tráfico admitem o seu tratamento em separado9. Consequentemente, é comum que as soqueiras sejam tratadas de modo apartado do terreno, mediante a constituição de contratos de garantia que as tenham como objeto autônomo.
De qualquer forma, compreender as soqueiras como partes integrantes não-essenciais é crucial, porque, sendo uma parte integrante, incide a norma do art. 79 do CC/02, segundo a qual “são bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente”.
Considerando que as soqueiras se incorporam ao solo de forma permanente e se mantém vinculadas ao imóvel durante todo o ciclo da lavoura, e considerando que a sua remoção implica, necessariamente, a alteração da sua substância – já que elas só preservam sua funcionalidade enquanto se mantiverem plantadas – as soqueiras são bens imóveis. O que é uma conclusão lógica, já que a parte integrante da coisa imóvel é igualmente imóvel.
Conclusões
Classificando-se como bens imóveis, as soqueiras de cana devem estar sujeitas àqueles institutos jurídicos que, por definição, aplicam-se aos bens imóveis. Daí que existiria uma impossibilidade jurídica de se constituir uma alienação fiduciária em garantia pelo regime do Decreto-Lei nº 911/69 e pelo art. 1.361 do CC/02, pois eles se referem a coisas móveis.
Consequentemente, a alienação fiduciária de soqueiras deveria seguir o regime da Lei nº 9.514/97, sendo averbada à margem da matrícula do bem principal junto ao Cartório de Registro de Imóveis competente.
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