A interminável saga dos juros no Brasil  

Gabriel José Bernardi Costa
Gabriel José Bernardi Costa

Introdução 

A saga dos juros moratórios no Brasil viveu seu mais novo capítulo no último dia 15 de outubro de 2025, quando a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça julgou o Recurso Especial nº 2.199.164-PR, sob o rito dos Recursos Repetitivos, fixando a tese de Tema 1.368. 

O recurso havia sido previamente afetado ao rito dos recursos repetitivos, com vistas a definir se a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (SELIC) deveria ser considerada para a fixação dos juros moratórios a que se referia o art. 406 do Código Civil de 2002, em relação aos fatos ocorridos antes da entrada em vigor da Lei nº 14.905/2024. 

No entanto, essa decisão está longe de pôr fim à controvérsia que revolve em torno do regime geral dos juros no direito brasileiro. 

A Lei nº 14.905/2024 

Essa lei de certa maneira revolucionou o regime geral de juros, ao alterar a redação do art. 406 do Código Civil. Até a sua entrada em vigor, o dispositivo do mencionado artigo previa que “Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional“. 

Ou seja, a norma remetia à taxa aplicável às dívidas da Fazenda Nacional. Tradicionalmente, a jurisprudência e a prática jurídica brasileira tendiam a aplicar, assim, a regra prevista pelo art. 161, §1º, do CTN, o qual dispunha a aplicação de juros simples à taxa de 1% ao mês; a despeito da própria SELIC ser a taxa referencial para as dívidas fazendárias, sobretudo após a edição da EC nº 113/2021. 

Se o regime jurídico dos juros moratórios posteriores à vigência da nova lei estava pacificado, perdurava ainda algumas dúvidas sobre qual o regime aplicável aos fatos anteriores à nova lei. Foram essas dúvidas que o Recurso Especial nº 2.199.164-PR procurou enfrentar. 

 

O Recurso Especial nº 2.199.164-PR 

Em concreto, a recorrente fora condenada ao pagamento da contraprestação por serviços hospitalares prestados pela recorrida. Em fase de cumprimento de sentença, o juízo de origem acolheu parcialmente a exceção de pré-executividade oposta para determinar que os juros moratórios incidentes sobre a dívida executada devessem corresponder à taxa SELIC. 

Levada à apreciação do Tribunal de Justiça do Paraná, por meio de agravo de instrumento, a decisão foi reformada para afastar a incidência da SELIC, substituindo-a pela taxa de 1% ao mês, conforme prática tradicional dos tribunais brasileiros. 

Quando a questão foi remetida ao Superior Tribunal de Justiça, a Corte Especial o apreciou sob o rito dos recursos repetitivos, fixando o Tema 1.368, nos seguintes termos: “O art. 406 do Código Civil de 2002, antes da entrada em vigor da lei nº 14.905/2024, deve ser interpretado no sentido de que é a SELIC a taxa de juros de mora aplicável às dívidas de natureza civil, por ser esta a taxa em vigor para a atualização monetária e a mora no pagamento de impostos devidos à Fazenda nacional”. 

Em sua fundamentação, o Relator Min. Ricardo Villas Bôas Cueva limitou-se a reiterar a posição já bastante pacificada do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto, de modo que o acórdão não traz propriamente nenhuma novidade jurídica. 

A decisão relembra as decisões já tomadas pela Corte Especial no REsp. nº 727.842-SP, julgado em 08 de setembro de 2008 e relatado pelo Min. Teori Zavascki; mas, em grande parte, o julgamento do REsp. nº 2.199.164-PR reproduz os argumentos contidos no prévio REsp. nº 1.795.982-SP, também julgado pela Corte Especial em 21 de agosto de 2024 e relatado pelo Min. Raul Araújo, vencedor da divergência aberta naquele julgamento; e posteriormente referendado pelo Supremo Tribunal Federal no RE nº 1.558.191-SP. 

Naquela outra decisão, já paradigmática sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a taxa a que se refere o art. 406 do Código Civil é a SELIC, sendo este o índice aplicável na correção monetária e nos juros de mora das relações civis. Aliás, note-se que a decisão, tomada dias antes da entrada em vigor da nova Lei nº 14.905/2024, já se referia à antiga redação do Código Civil. 

Segundo o tribunal, o Código Civil não faria nenhuma menção direta ao Código Tributário Nacional, referindo-se genericamente que os juros de mora “serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional“, ademais, o STJ entende que o Código Civil tampouco exigiria que juros de mora e a correção monetária deveria ser previstos em índices oficiais separados e distintos. 

A norma do art. 406 do CC/02 determinava a fixação dos juros pela taxa aplicável à mora de pagamento dos impostos federais, espécie do gênero tributo. Assim, dever-se-ia aplicar as leis especiais dos impostos federais; como, por exemplo, Lei nº 9.065/199 e a Lei nº 9.393/1996, entre outras, as quais determinam, como índice oficial, a taxa SELIC. 

No REsp. nº 1.795.982-SP, o Min. Raul Araújo já apontara que o Código Tributário Nacional seria inaplicável como parâmetro de juros de mora nas relações civis, porque caberia à SELIC o papel de principal índice macroeconômico oficial, definido e prestigiado pela Constituição da República, pelas Leis de Direito Econômico e Tributário invocadas e pelas autoridades competentes. Consequentemente, todos os credores e devedores de obrigações civis comuns devem, também, submeter-se ao índice, por força do art. 406 do CC. 

Esse argumento também ressoou no voto do Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, no REsp. nº 2.199.164-PR, que destaca a natureza subsidiária da norma prevista pelo art. 161, §1º, do CTN; o que, naturalmente, afastaria sua incidência diante das disposições legais expressas pela SELIC. 

Indecisões e Incongruências 

Talvez a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, todavia, não seja definitiva. Ela deixa em aberto uma questão que a própria Lei nº 14.905/2024 criou. 

A nova redação do art. 406 dispõe que “quando não forem convencionados, ou quando o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, os juros serão fixados de acordo com a taxa legal”. Com isso, o dispositivo cria uma figura até então inexistente: a “taxa legal”. 

O que se deva compreender por “taxa legal” é definido pelo art. 406, §1º, do CC/02, o qual introduz uma norma interpretativa para o caput, segundo a qual “a taxa legal corresponderá à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), deduzido o índice de atualização monetária de que trata o parágrafo único do art. 386 deste Código”. 

Veja-se que a “taxa legal” não equivale à SELIC propriamente dita, e tampouco corresponde a uma simples subtração do IPCA da SELIC, porque, conforme prevê o art. 406, §3º, do CC/02, “a metodologia de cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação serão definidas pelo Conselho Monetário Nacional e divulgadas pelo Banco Central do Brasil”. 

Assim, o valor da “taxa legal” corresponde àquele previsto e divulgado pelo BACEN, nos termos da Resolução nº 5.171/2024, que regulamentou o Código Civil neste aspecto. Naquela resolução, o Banco Central afastou qualquer equivalência entre a “taxa legal” e o resultado da subtração do IPCA da SELIC; porque a entidade adotou como parâmetros de cálculo o fator acumulado da SELIC no mês imediatamente anterior, considerando os números de dias úteis do respectivo mês, bem como adotou o IPCA-15, respectivamente. 

Consequentemente, ao contrário do que pode parecer, a decisão do REsp. nº 2.199.164-PR não uniformiza o regime de juros incidentes nos períodos antes e depois da Lei nº 14.905/2024, limitando-se apenas a pacificar as controvérsias ainda pendentes do período anterior à nova lei. 

 

Conclusões 

Caberá aos atores jurídicos se atentarem à persistente divisão de regimes normativos, quando forem realizar a atualização de cálculos de dívidas.  

Até a entrada em vigor da Lei nº 14.905/2024, ou seja, até 29 de agosto de 2024, os juros estarão submetidos à redação original do art. 406 do CC/02, conforme entendimento fixado pelo Tema 1.368 no Recurso Especial nº 2.199.164-PR, aplicando-se a SELIC pura. Após 30 de agosto de 2024, incidirá o novo regime nos termos da Lei nº 14.905/2024 e Res. CMN nº 5.171/2024, conforme a “taxa legal”, divulgada pelo Banco Central e que não se confunde com a simples SELIC. 

Provavelmente, a saga dos juros não está terminada. Ainda pendem questões relevantes a serem definidas, principalmente em relação às necessárias conciliações que deverão ser feitas na homogeneização entre os regimes. 

 

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