Embargos com efeitos infringentes e a volta do obstáculo: quando a admissibilidade vira um labirinto
O contencioso tributário brasileiro voltou a colocar sob os holofotes um problema processual que afeta a segurança jurídica: a reapreciação de óbices outrora afastados, convertendo a admissibilidade em foco de incerteza processual.
O caso concreto é o AREsp nº 2821036-SP (2024/0463949-8), oriundo do Proc. nº 5007632-53.2021.4.03.6105 (TRF-3). Discute-se aqui os limites de aplicação da tese segundo a qual não há prescrição intercorrente em processos administrativos fiscais. A questão central é simples — e relevante para milhares de contribuintes: qual é o limite dessa inaplicabilidade quando há inércia administrativa extrema? Mais concretamente: pode a Administração reter comunicações processuais por tempo indeterminado, sem qualquer consequência para o crédito tributário?
O acórdão do TRF-3 manteve a validade da constituição do crédito após mais de dez anos de paralisação entre a impugnação do auto de infração e a constituição definitiva. Sob o prisma material, os contribuintes sustentam violação direta ao art. 24 da Lei 11.457/2007 (prazo de 360 dias para decidir), além de defender, subsidiariamente, dissídio jurisprudencial. Por isso afirmam: a decisão do TRF-3 está apenas parcialmente em linha com a orientação do STJ, e deixou de enfrentar as múltiplas violações ao sistema jurídico, inclusive à legislação federal e aos Temas Repetitivos 269/270, que impõem balizas temporais à Administração.
O Recurso Especial foi interposto com dupla fundamentação (violação de lei federal e divergência), acompanhado de cotejo analítico. Na sequência, sobreveio decisão que o inadmitiu à luz da Súmula 83/STJ e por suposta deficiência do cotejo. Na sequência, os contribuintes interpuseram Agravo em Recurso Especial (AREsp) contra a decisão de inadmissão. O AREsp, porém, também foi monocraticamente não conhecido à luz da Súmula 83/STJ e sob alegada ausência de impugnação específica. Contra essa decisão, os contribuintes opuseram Embargos de Declaração, os quais foram acolhidos com efeitos infringentes, tornando sem efeito a negativa anterior e determinando a sua reapreciação. Parecia restabelecido o fluxo regular.
Não foi o que ocorreu. Em 25/2/2025, nova decisão não conheceu do Agravo em Recurso Especial (AREsp), sob o argumento de ausência de impugnação específica ao fundamento da Súmula 83/STJ, novamente sob a mesma questão, já superada na decisão sobre os Embargos de Declaração, nos seguintes termos:
“(…) Por meio da análise dos autos, verifica-se que a decisão agravada inadmitiu o Recurso Especial, considerando: Súmula 83/STJ. (…) a parte agravante deixou de impugnar especificamente o referido fundamento (…) não se conhecerá do AREsp que não tenha impugnado todos os fundamentos da decisão recorrida (…) não conheço do Agravo em Recurso Especial.”
Esse raciocínio não se sustenta no caso concreto. Primeiro, porque o AREsp é um recurso instrumental (CPC, art. 1.042) destinado a impugnar a decisão de inadmissibilidade, dele se exige impugnação específica dos fundamentos, não a reprodução do cotejo analítico, que é requisito do próprio REsp, que já constava dos autos.
Segundo, porque, logo de saída, o AREsp enfrentou expressamente a aplicação automática da Súmula 83/STJ, demonstrou destoar do acórdão recorrido e realçou a excepcionalidade fática (inércia administrativa decenal) à luz dos dispositivos legais citados e dos Temas 269/270.
Terceiro, porque os embargos com efeitos infringentes já haviam superado o entrave formal, tornando incompatível a reimplantação do mesmo óbice.
Há, portanto, dupla disfunção. De um lado, a contradição interna: superado o entrave formal pelos EDs, cabia dar seguimento ao fluxo regular — reconhecendo a admissibilidade do agravo — e não reinstalar o mesmo obstáculo. De outro, a extrapolação cognitiva na admissibilidade: afirmar que o acórdão recorrido “está em consonância” com a jurisprudência do STJ é juízo de mérito, que cabe ao órgão julgador no exame do Recurso Especial, não à triagem.
A Súmula 83/STJ, por sua vez, não autoriza a fechar a porta quando se discute a delimitação de tese repetitiva diante de quadro fático excepcional que tensiona a legalidade estrita (Lei 11.457/2007, art. 24, e CTN, arts. 173 e 174).
Esse ponto é essencial: a discussão não é “contra a jurisprudência” do STJ, é, sim, sobre os seus limites de incidência quando confrontada com normas federais expressas e com inércia estatal extrema. Transformar essa deliberação de mérito em filtro de admissibilidade é privar o Tribunal do debate qualificado que a própria sistemática dos repetitivos exige.
O resultado prático é preocupante. Embargos de Declaração acolhidos com efeitos infringentes deveriam estabilizar o procedimento, evitando reviravoltas processuais e preservando a coerência decisória. Quando, apesar disso, se retorna ao mesmo óbice, perde-se tempo, fragiliza-se a segurança jurídica e retarda-se o enfrentamento da questão de direito que interessa ao país: até onde vai a possibilidade de afastar a prescrição intercorrente administrativa?
Em reforço, há precedente envolvendo as mesmas partes e contexto fático praticamente idêntico, no qual o próprio TRF3, nos autos do processo nº 5026639-80.2020.4.03.6100 (conexo ao Proc. nº 5007632-53.2021.4.03.6105), reconheceu, em trânsito em julgado, a prescrição intercorrente diante de mais de nove anos de inércia administrativa, aplicando o art. 24 da Lei 11.457/2007 e extinguindo os créditos. Já na segunda demanda, envolvendo as mesmas partes e quadro fático substancialmente idêntico, sobreveio decisão em sentido completamente oposto, não reconhecendo a prescrição.
Ter decisões tão díspares — com mesmas partes e fatos equivalentes — evidencia o conflito a ser sanado, o qual ensejou a interposição do Recurso Especial pela alínea “c”, exatamente para uniformizar a jurisprudência sob pena de grave abalo à segurança jurídica.
Em tempos de sobrecarga de litigiosidade, respeitar a lógica recursal não é formalismo: é condição para que o STJ cumpra seu papel de uniformizar o direito federal justamente nos casos-limite, como este, em que a duração razoável do processo e o devido processo legal se veem testados por décadas de inércia.
O sistema não pode chancelar que a Administração retenha indefinidamente a marcha procedimental sem qualquer consequência para o crédito tributário. É isso que o Recurso Especial pretende submeter ao crivo da Corte. E é por isso que não se pode encerrar o debate no funil da admissibilidade. Muito menos quando o acórdão paradigma diz respeito a um caso envolvendo as mesmas partes e praticamente o mesmo contexto fático.


