Fraude Contra Credores não se confunde com Desconsideração da Pessoa Jurídica – Impactos da decisão proferida pelo STJ no REsp n° 1.792.271-SP

, Editora Rio, 1977, p. 72-76.
INTRODUÇÃO
Em 1 de abril de 2025, a Quarta Turma do STJ concluiu o julgamento do Recurso Especial (REsp) n° 1.792.271-SP, relatado pelo Ministro Antônio Carlos Ferreira, no qual se fixou uma importante diferenciação ente os conceitos de fraude à execução, fraude contra credores e desconsideração da personalidade jurídica, traçando alguns parâmetros para que sejam utilizados corretamente pelos credores e magistrados, a depender dos objetivos, contextos e particularidades de cada caso concreto.
O CASO
O caso se trata de uma execução ajuizada em junho de 2012 pelo banco CCB Brasil – China Construction Bank (Brasil) Banco Múltiplo S.A., contra as empresas Serpal Engenharia e Construtora Ltda. e Zurak S.A. Em dezembro de 2013, a 20ª Câmara de Direito Privado do TJSP deu provimento ao agravo de instrumento do Banco, reconhecendo a desconsideração da personalidade jurídica e determinando a inclusão no polo passivo da execução os irmãos Priscila e Augusto Quirós, filhos dos sócios Juan e Silvia Quirós.
Os irmãos, então, ajuizaram embargos à execução para impugnar a desconsideração quanto a eles, requerendo o reconhecimento de sua ilegitimidade para a ação executiva. Em primeiro grau, os embargos foram improcedentes. Já em sede de apelação, o TJSP deu parcial provimento para limitar a responsabilidade dos recorrentes apenas aos bens recebidos em doação ou adquiridos por dinheiro doados por seus pais em data posterior ao saque da Cédula de Crédito Bancário.
Afastou-se, ainda, a responsabilidade dos irmãos pelo débito objeto da execução, pois não eram sócios ou administradores das empresas executadas, bem como foi retirado o bloqueio dos bens adquiridos por doação ou com dinheiro doado pelos pais em data anterior à Cédula. Contra essa decisão, foram interpostos recursos especiais pelos irmãos, pleiteando sua exclusão do polo passivo e o debloqueio sobre a totalidade de seus bens, e pelo banco, buscando a responsabilidade integral dos irmãos e respectivos patrimônios.
A DECISÃO DO STJ
O REsp. n° 1.792.271-SP foi julgado por maioria da Quarta Turma, tendo votado a favor dos irmãos recorrentes o Min. Relator Antonio Carlos Ferreira, que foi acompanhado pelo Min. João Otávio de Noronha e da Min. Maria Isabel Gallotti. Ficaram vencidos os Min. Raul Araújo e Min. Marco Buzzi.
O ministro relator do STJ, Antonio Carlos Ferreira votou pelo provimento do recurso dos irmãos, pois entendeu que houve violação ao artigo 50 do Código Civil, que disciplina a desconsideração da personalidade jurídica. Isso, pois, eles foram atingidos por este instituto tão somente por terem recebido doações de imóveis e dinheiro de seus pais, sócios nas empresas do grupo econômico das executadas principais e atingidos pela desconsideração. Além disso, destacou que a limitação temporal da responsabilidade, que recaiu sobre os bens recebidos ou adquiridos em data posterior ao saque da Cédula, se deu em razão de o TJSP ter entendido pela existência de indícios de fraude contra credores, disciplinado pelo artigo 158 do Código Civil.
Segundo o relator, o TJSP “criou uma nova espécie de desconsideração da personalidade jurídica, equivalente, na verdade, à fraude contra credores”, o que não encontra previsão legal e, portanto, não deve ser mantido.
Em justificativa, ressaltou o ministro que a desconsideração da personalidade jurídica é limitada a atingir sócios por obrigações das respectivas empresas, de empresas por obrigações de sócios e de empresas por obrigações de outras pertencentes ao mesmo grupo econômico. A partir desse instrumento, não se pode, portanto, responsabilizar filhos por obrigações de pais, ainda que haja indícios de fraude, devendo os credores buscarem a responsabilização através de outros institutos específicos para isso, como a fraude contra credores ou a fraude à execução.
No caso em questão, no entanto, os bens dos irmãos foram atingidos a partir do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, sem que houvesse uma ação pauliana para apurar a ocorrência de fraude contra credores e, preliminarmente, decidiu não ser hipótese de fraude à execução, pois as aquisições dos imóveis através das doações ou de dinheiro doado pelos seus pais foram anteriores ao ajuizamento da ação de execução pelo banco. Dessa maneira, votou o ministro relator pelo provimento do recurso dos irmãos, em razão de ser vedado legalmente que sejam atingidos pela desconsideração da personalidade jurídica.
Em divergência, o ministro Marco Buzzi votou pela procedência do recurso especial do banco, para que os irmãos fossem atingidos integralmente pela desconsideração da personalidade jurídica e, assim, continuassem integrando o polo passivo da execução, com a responsabilização pelo débito executado. Fundamentou seu voto a partir das evidências de que o pai dos irmãos recorrentes realizou as doações dos imóveis e do dinheiro aos seus filhos com o intuito de fraudar credores, entendendo que foram comprovados o desvio de finalidade e a confusão patrimonial, requisitos da desconsideração da personalidade jurídica.
O ministro Raul Araújo, também em divergência, votou pela manutenção do entendimento do TJSP, no sentido de limitar a responsabilidade patrimonial dos irmãos aos bens adquiridos em data posterior à emissão da Cédula de Crédito Bancário.
Acompanhando o voto do relator e em resposta ao levantado pelos ministros em divergência, a ministra Maria Isabel Galotti, destacou que o que se estava buscando no caso era a declaração de ineficácia das doações em imóvel e em dinheiro realizadas de forma fraudulenta, permitindo a utilização dos bens para o pagamento da dívida em execução; e não a análise de abuso ou desvio da personalidade jurídica. Reiterou, portanto, não ser aplicável o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, bem como não ser possível o reconhecimento de fraude contra credores incidentalmente, uma vez que deve ser requerida em ação autônoma, a chamada “ação pauliana”.
Em voto de desempate, o ministro João Otávio de Noronha seguiu o voto do relator, reiterando que o foco da desconsideração da personalidade jurídica é “o sócio ou administrador que se beneficiou da manipulação da pessoa jurídica”, inexistindo respaldo legal para o alcance de bens de terceiros, ainda que exista fraude. Em maioria, portanto, deu-se provimento ao recurso dos irmãos, afastando-se integralmente a responsabilidade pelo débito em execução pelo banco e, portanto, a constrição recaída sobre seus bens.
RELEVÂNCIA E IMPACTOS DA DECISÃO
O grande mérito da decisão tomada pelo STJ no REsp n° 1.792.271-SP, sobretudo por conta do voto do Relator Antônio Carlos Ferreira, está em definir de forma mais clara os distintos efeitos jurídicos de cada instituto; isto é, das diferentes consequências previstas pelas normas jurídicas em cada caso.
À primeira vista, a razão de fundo para a decisão tomada pela corte estaria na constatação de que a desconsideração da personalidade jurídica “[…] não se presta para atribuir responsabilidade patrimonial a terceiros que não têm qualquer espécie de vínculo jurídico com as sociedades atingidas”. Diante do risco que esse julgamento seja mal compreendido, é preciso esclarecer que o STJ não negou de forma absoluta toda e qualquer atribuição de responsabilidade a terceiros.
O que ficou esclarecido é que, em uma situação na qual o terceiro beneficiado pelo ato fraudulento não tenha nenhuma relação ou vínculo com as sociedades cuja personalidade tenha sido desconsiderada, o instrumento de responsabilização adequado não poderá ser a desconsideração da personalidade jurídica. Esse era o contexto do REsp n° 1.792.271-SP, em que os recorrentes, além de terem recebido os bens antes da constituição da obrigação, eles não eram sócios das empresas devedoras nem das demais empresas do grupo econômico e não ficou constatada nenhuma confusão patrimonial entre os devedores e os recorrentes.
De modo que seria plenamente possível que terceiros não-sócios pudessem ser responsabilizados mediante desconsideração da personalidade jurídica, quando fosse provada a confusão patrimonial entre si.
De qualquer forma, o REsp n° 1.792.271-SP não apenas reafirma as diferentes condições de aplicação da fraude contra credores e da desconsideração da personalidade jurídica, como também distingue o âmbito de eficácia de cada instituto. O Min. Relator Antônio Carlos Ferreira deixa isso claro quando aponta que a consequência normativa da desconsideração da personalidade é justamente a desconstituição da própria personalidade jurídica em questão.
Isto é, a desconsideração é uma figura que deve ser interpretada em linha com a ideia de que a pessoa jurídica corresponde a um polo de imputação de situações que, nos termos do art. 49-A do CC/02, permite a criação de um patrimônio distinto dos sócios e associados. E, consequentemente, caberá a esse outro patrimônio separado servir de garantia geral aos credores da pessoa jurídica, tal como prevê o art. 789 do CPC/15.
O que a desconsideração da personalidade jurídica permite é ignorar os efeitos jurídicos dessa separação, sempre que ela servir de instrumento a práticas fraudulentas. E isso foi bem anotado pelo voto-vista do Min. João Otávio de Noronha, que, acompanhando o relator, registrou não ser uma simples fraude ou benefício a terceiro que autorizaria o emprego da desconsideração para atingir terceiros, o que deveria haver é o abuso da própria pessoa jurídica.
Se a fraude ou o esvaziamento patrimonial ocorrer em benefício de terceiro sem relação com a pessoa jurídica devedora, então não caberá o IDPJ, mas a fraude contra credores; a qual precisará ser conhecida por ação judicial autônoma.
Por mais que essa decisão pareça restringir as possibilidades concedidas aos credores de devedores fraudulentos, a realidade é justamente o oposto, como bem apontou a Min. Maria Isabel Gallotti: “[…] o reconhecimento de fraude contra credores beneficia a todos os credores indistintamente, e não apenas aquele que suscitou a questão, ao contrário do que ocorre no incidente de desconsideração da personalidade jurídica”.
O IDPJ tem eficácia relativa, sendo oponível apenas pelo credor que suscitou o incidente. O que não ocorre com as consequências da fraude contra credores, cuja consequência é anular os negócios jurídicos praticados pelo devedor e desconstituir sua eficácia, reintegrando a titularidades dos bens transmitidos de volta para o patrimônio insolvente; assegurando, assim, igualdade de condições a todos os credores do devedor e evitando que o benefício fique vinculado à velocidade das prestações jurisdicionais individuais de cada credor.
Conclusões
Com o REsp n° 1.792.271-SP, o Superior Tribunal de Justiça reafirma as fronteiras entre os institutos similares, porém distintos; revertendo a dissolução conceitual operada pela aplicação indiscriminada da desconsideração da personalidade jurídica pela prática forense nacional.
A reação contra a aplicação desmensurada da desconsideração da personalidade jurídica não é recente. Talvez a maior inovação nessa frente tenha sido a criação do incidente de desconsideração (IDPJ), instituído pelo Código de Processo Civil de 2025, em seus arts. 133 a 137, impedindo a cognição dos pedidos incidentais de desconsideração nos próprios autos da demanda principal.
Com a mencionada decisão, o STJ dá mais um passo na concretização de fronteiras bem definidas entre o IDPJ, a fraude contra credores e a fraude à execução, garantindo maior previsibilidade e segurança no uso dessas ferramentas jurídicas.